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Passados 50 anos do golpe e 25 da promulgação da Constituição Cidadã, o direito brasileiro ainda traz marcas da ditadura militar. Além de certas leis daquela época permanecerem em vigor, a jurisprudência e algumas práticas no Judiciário remetem ao período de exceção que o Brasil viveu. Muitas vezes, quando se quer desmerecer uma legislação daquele tempo, simplifica-se ao defini-la como "uma lei do tempo da ditadura". Mas não é só a data de nascimento que qualifica uma lei, mesmo com a abertura política e com a Constituição de 1988, alguns diplomas legais foram mantidos, cabendo ao Judiciário verificar o que foi ou não recepcionado. Até hoje há pontos questionados que fazem com que juristas e legisladores debatam se uma lei dos tempos da ditadura foi recepcionada pelo ordenamento jurídico instituído pela nova constituição federal. Algumas trazem nitidamente as marcas de um período totalitário, outras são mais objetivas e, pelo menos à primeira vista, parecem não representar ameaças ao ordenamento jurídico.

Loman

Mesmo com a Constituição de 1988 e com resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que atualizaram alguns assuntos relativos à carreira dos juízes, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) permanece em vigor. A previsão de penalidade máxima para o magistrado em casos de corrupção ser a aposentadoria compulsória era uma proteção a juízes que pudessem vir a ser perseguidos em um período em que não havia garantias nas relações entre os poderes, como explica o professor de direito constitucional da UFPR Egon Bockmann Moreira. Contudo, hoje, em tempos de democracia esse tipo de proteção já não faz mais sentido e essa punição poderia ser revista.

Códigos 1

O Código Tributário (Lei 5.172/1966) e o Código de Processo Civil (Lei 5.869/1973) continuam em vigor até hoje. Mesmo havendo um projeto para um novo CPC em tramitação no Congresso, é o antigo que está valendo. A atualização do Código de Processo Civil se faz necessária por motivos técnicos, mas o fato de se tratarem de leis do tempo da ditadura, nesse caso, não representa um problema, segundo a opinião do professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Egon Bockmann Moreira. Ele considera que essas legislações são tecnicamente muito boas e "não parecem ter levado consigo vícios do regime". O CPC, por exemplo, tomou como base uma escola de processo civil muito tradicional, a italiana.

Códigos 2

Apesar de haver bons códigos, a criação desses dispositivos legais pode ser relacionada a períodos não democráticos, como explica Diego Werneck, professor da pós-graduação em Direito do Estado da FGV Rio. Isso porque, segundo ele, há a ideia de código como algo infalível e racional. Além disso, em um período democrático é muito mais difícil escolher uma escola de pensamento que represente esse ideário entre tantas ideias divergentes que têm voz. Já em um período de exceção se pode impor qual linha técnica será seguida e não há espaço para questionamentos sobre o limite entre o que é técnico e o que é político. O Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, ambos de 1969, também continuam em vigor, mas há iniciativas da própria Justiça Militar para revisá-los, já que, entre outros tópicos desatualizados, algumas das penas estão defasadas em comparação com a legislação penal comum.

Constituição 1

A Constituição de 1988 foi uma resposta ao que se tinha vivido após o Golpe de 64. Depois de um período de privação de direitos, a Lei Maior veio repleta de direitos fundamentais, e o fato de ser antítese da fase anterior acaba por ser uma de suas marcas. Entre as reações estão a previsão de igualdade, liberdade de expressão e o total repúdio à tortura, como prevê o inciso III do artigo 5º: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". A Constituição Cidadã foi criada para garantir todos os direitos que haviam sido retirados pelo regime militar e acrescentar outros nunca previstos antes. E até hoje, 25 anos depois de sua promulgação, ainda se procura incluir direitos por meio de emendas, até mesmo o direito à busca da felicidade, como propõe uma PEC em tramitação no Congresso Nacional.

Constituição 2

Os juristas entrevistados observam que é comum um ciclo de compensação em constituições criadas após períodos de exceção, como ocorreu em Portugal, em 1976, e na Espanha, em 1978. "Muitas constituições pós-regime autoritário olham para frente, mas também olham para trás e dizem ‘não, isso nunca mais’", ressalta o professor de Direito do Estado da FGV Rio Diego Werneck. Para o livre-docente de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Dircêo Torrecillas Ramos, "em razão de termos saído da ditadura, a Constituição de 1988 veio carregada de certo exagero". Como observa o professor Egon Bockmann Moreira, a previsão de direitos como moradia, reforma agrária e saúde e o seu não cumprimento na prática podem gerar um sentimento de desestima constitucional, já que há tantas promessas de garantias feitas pelo legislador em 1988 que ainda não foram cumpridas.

Jurisprudência

A mudança da Constituição em 1988 não significa que se apertou um botão e se renovou todo o ordenamento jurídico. Os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, continuaram a ser os mesmos da época da ditadura, e gradualmente o tribunal foi sendo renovado. O pesquisador da FGV Diego Werneck cita como exemplo os mandados de injunção, previstos na Constituição Federal, mas que, nos anos 1990, foram entendidos pelo STF como apenas uma obrigação de avisar ao Legislativo que uma lei prevista na Constituição deveria ser criada. Só em 2007, o STF reviu o conceito e decidiu que, enquanto não houvesse legislação sobre as greves dos servidores públicos, valeria a regra prevista para o setor privado, por exemplo. De acordo com Werneck, a jurisprudência é que vem atualizando boa parte do direito brasileiro após a Constituição, e esse é um processo que leva tempo. Para o pesquisador, ao se refletir sobre as heranças que ficaram para o direito, é preciso perguntar: "Em que medida os juízes que permaneceram no seu cargo [após a abertura] não trouxeram um olhar anterior?"

Concentração de poder

O Decreto-Lei 200, de 1967, dá as diretrizes sobre a organização da administração federal e organiza a administração pública direta e indireta, como as empresas públicas, empresas de economia mista e autarquias. Algumas leis criadas posteriormente foram tomando o espaço desse decreto, mas o fato é que ele ainda está em vigor e dá amplos poderes para o presidente da República. No governo Lula, um grupo de juristas especialistas em direito administrativo apresentou à Casa Civil um projeto de lei que reformaria essa estrutura, mas o projeto permanece no mesmo lugar e não teve prosseguimento. O professor de Direito Constitucional da UFPR Egon Bockmann Moreira avalia que a burocracia que esse decreto traz pouco tem a ver com a atual dinâmica administrativa do país. Por outro lado, há interesse em se manter essa lei: "O Decreto-Lei 200/1967 feito logo no alvorecer da ditadura ainda interessa, em muito, pela concentração de poder do governo federal".

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