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Quando pensamos em abelhas e produtos que chegam às prateleiras, a lista normalmente se resume a mel, cera, própolis e geleia real. No entanto, elas estão diretamente envolvidas no cultivo de diversos alimentos, da maçã à soja. Seja melhorando a produção ou como parte fundamental desse processo, 76% das plantas utilizadas para produção de alimentos no Brasil é dependente da polinização realizada por animais.

O dado é do 1º Relatório Temático de Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil, resultado de uma parceria entre a Rede Brasileira de Interações Planta-Polinizador (Rebipp) e a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, da sigla em inglês), apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A lista de alimentos que dependem, em maior ou menor grau, do trabalho de polinizadores inclui elementos importantíssimos para a balança comercial brasileira, como soja, café, feijão e laranja.

O relatório estima que esse serviço ambiental (realizado pela natureza e que favorece o ser humano, também chamado de serviço ecossistêmico) poupa aos agricultores R$ 43 bilhões anuais. Esse valor foi calculado a partir de quão dependente a cultura é do serviço de polinização e de quanto ela tem valor na balança comercial brasileira.

Em algumas culturas, a polinização é feita exclusivamente por animais, como é o caso do maracujá, polinizado pela abelha mamangava. “Se a mamangava não fizer esse serviço de polinização - pegando o grão de pólen de uma flor, depositando no estigma de outro indivíduo - não existe, em hipótese alguma, a produção do fruto do maracujá. A gente chama isso de uma dependência essencial”, explica a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Kayna Agostini. Para outros produtos, como a soja, o papel dos polinizadores não é essencial, mas há ganhos na produção - nesse caso, de até 28%.

“A soja é o produto que mais tem valor na nossa balança comercial. O café produz o grão sem necessidade da polinização [por animais], mas se você coloca o polinizador, além de ter uma maior quantidade de grão, os grãos saem com maior teor de cafeína. Tanto a quantidade quanto a qualidade melhoram”, aponta a pesquisadora.

Perda do habitat é um dos problemas mais graves que ameaçam as colmeiasBigStock

Lançado no início de fevereiro, o objetivo do relatório da Rebipp e da BPBES é chamar a atenção de autoridades para a importância dos serviços ecossistêmicos prestados por polinizadores - em grande parte pelas abelhas (78,9%) - e auxiliar na tomada de decisões que visem proteger esses animais.

“Para a ciência, esse é um assunto muito antigo. Os pesquisadores estudam os insetos polinizadores na entomologia, botânica e biologia. Mas sob a ótica da divulgação da importância das abelhas na produção, especialmente a importância que a mídia está dando no Brasil, é recente”, conta a diretora-executiva da Associação Brasileira de Estudo das Abelhas (Abelha), Ana Assad.

A partir do final de 2006, relatos alarmantes do distúrbio do colapso das colônias (DCC) foram registrados nos Estados Unidos e Europa. O DCC é caracterizado pelo desaparecimento da maioria das abelhas operárias em uma colônia, deixando para trás uma rainha, comida e algumas abelhas para cuidar das abelhas imaturas restantes. No Brasil, não há registros consolidados de DCC, mas foi a partir da atenção dada a esses casos que o tema da importância das abelhas começou a ganhar mais destaque.

Ameaças à sustentabilidade

Ainda que tenha grande valor econômico e ambiental, a sustentabilidade desse processo é ameaçada por fatores como desmatamento, mudanças climáticas, poluição ambiental, agrotóxicos, espécies invasoras, doenças e patógenos.

“Nós temos uma plêiade de problemas”, garante o pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Décio Gazzoni, que considera a perda de habitat o mais grave deles. Mudanças drásticas no uso da terra, com a retirada da mata nativa e substituição por lavouras, construção de estradas, áreas de lazer, indústrias fazem com que as abelhas percam não somente seus locais de nidificação como também reduz a oferta de alimentos.

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“Você troca áreas nativas que têm uma grande diversidade de plantas por monocultura, então elas só comem um tipo de pólen e um tipo de néctar. É a mesma coisa que alimentar a população só com arroz: vai ter deficiência nutricional”, esclarece a professora Roberta Nocelli, do Centro de Ciências Agrárias da UFSCar. Tanto a falta de espaço para fazer ninhos quanto a padronização do alimento levam a um problema sério de enfraquecimento das colônias, tornando-as mais suscetíveis a doenças.

Os efeitos das mudanças climáticas, como excesso ou falta de períodos de chuva, por exemplo, podem modificar o padrão de distribuição das espécies, a época de floração e o comportamento dos polinizadores. Já os poluentes ambientais, incluindo os agrotóxicos, podem levar à morte ou atuar como repelentes dos polinizadores. “Existem registros de uma morte em massa dessas populações de polinizadores por conta da utilização de agrotóxicos, principalmente esse agrotóxico que é pulverizado através de aviões, que muitas vezes isso acaba com colmeias inteiras. Temos alguns relatos desses casos, mas os números são subestimados por que ainda não existe um projeto de monitoramento muito elaborado no Brasil”, aponta Kayna.

Para as especialistas, o grande problema em relação aos defensivos agrícolas é o uso indiscriminado e irresponsável, levando à aplicação excessiva e desnecessária dos produtos químicos - ou até mesmo chegando ao uso de agrotóxicos ilegais, falsificados ou contrabandeados. Roberta destaca, ainda, o problema com a ideia de que seria possível ter controle absoluto das pragas usando venenos. “Não existe 100% de controle. Por isso, às vezes [o agricultor] acha um inseto e aumenta a dose [de agrotóxicos]. E com isso a gente está tendo um outro problema, que é a resistência em várias pragas na agricultura. O caso dos polinizadores é emblemático, mas acho que a gente tem muitas coisas a reavaliar na nossa forma de fazer agricultura”, opina.

O Brasil tem a maior diversidade de abelhas do mundo, mas nós não conhecemos as nossas abelhas, aponta Roberta. “A grande maioria das abelhas é solitária, não é social, não tem rainha, não produz mel. A maioria das pessoas não sabe disso. Essas abelhas que estão na mata. A gente não tem como quantificar o que tá acontecendo com elas”, diz.

Mitigação de efeitos

Entender a importância do serviço prestado pelas abelhas é essencial para evitar que tenhamos um colapso na polinização. “Essa consciência da importância das abelhas, do que é a polinização, do que é a contribuição delas, tem incluído muita gente na discussão. Por isso eu acho que a gente está num momento de melhora da situação. Ainda temos mortalidade [de polinizadores] - e muita. Mas hoje a gente olha pra essa mortalidade com outros olhos”, pondera Roberta Nocelli.

Algumas culturas, como o melão e a maçã, são dependentes essenciais do serviço ecossistêmico da polinização, e os produtores já fazem o manejo da produção em harmonia com os insetos. Pequenas mudanças, como aplicar o defensivo agrícola em horários diferentes daqueles em que os polinizadores estão voando, por exemplo, já ajudam a combater os riscos a esses animais. O grupo de pesquisa do qual Gazzoni faz parte, na Embrapa, tem incentivado, por exemplo, a criação de grupos de mensagens no Whatsapp para que os produtores possam combinar estratégias.

Ana aponta que a Associação Abelha vem trabalhando nesse sentido, buscando disseminar informações e, assim, aumentar a profissionalização no campo. Ela acredita que a falta de comunicação entre agricultores e apicultores é a principal causa da mortalidade massiva de abelhas por agrotóxicos: o agricultor aplica o agrotóxico sem saber que o apicultor deixou suas caixas de abelhas no fragmento de mata silvestre que há nos arredores da propriedade, por exemplo, matando as colmeias.

Grupos de mensagens no whatsapp buscam aproximar agricultores e apicultores Arquivo /Gazeta do Povo

“A maior parte dos apicultores trabalha com a área dos outros, mas muitas vezes o apicultor usa a área de um agricultor que pode nem saber que existem colmeias ali”, afirma a diretora-geral da instituição. Assim, o primeiro passo é propagar informação entre agricultores, apicultores (criadores de abelhas Apis mellifera) e meliponicultores (criadores de abelhas sem ferrão), incentivando o diálogo entre os trabalhadores.

Apesar disso, não é possível fazer o mesmo em relação às abelhas silvestres. Assim, é necessário encontrar formas de tornar a produção agrícola menos agressiva aos insetos e investir na preservação dos fragmentos florestais, onde polinizadores fazem ninhos e buscam alimento. “Nós temos que fazer principalmente o manejo integrado de pragas, que era importante no passado e foi um pouco negligenciado nos últimos anos, por conta do uso de agrotóxicos. Mas a gente precisa voltar para esse manejo e usar o agrotóxico apenas quando necessário, na dose recomendada”, ressalta Roberta.

O que falta - além de informação de qualidade chegando aos produtores para melhor manejo das colônias - é uma fiscalização que coíba as más práticas. “Infelizmente, no Brasil nós não temos nenhuma política pública de proteção ao polinizador. Existem várias iniciativas que sempre mostraram o valor da polinização, mas nenhuma se tornou lei”, aponta Kayna, que participou da elaboração de um resumo para tomadores de decisão feito a partir do Relatório Temático de Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil. “Tentamos mostrar ao máximo que se o ser humano não colocar os polinizadores em risco, o maior beneficiado vai ser ele mesmo.”

Caso haja uma diminuição drástica na população de polinizadores, teremos que repensar nossa alimentação. Em alguns casos, como o da acerola, somente um tipo de abelha faz a polinização. Logo, a extinção apenas desta tribo de abelhas já faria com que as acerolas desaparecessem. “Precisamos ter as duas coisas, porque ambas são riquezas: a biodiversidade é uma riqueza imensa e a nossa agricultura é o que sustenta parte desse país. Então, a gente precisa investir na agricultura, mas não pode ser a qualquer preço”, conclui Roberta.

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