Nos últimos meses, dezenas de servidores públicos de ministérios, órgãos e autarquias federais foram deslocados de suas funções cotidianas para dar atenção a uma pauta urgente: responder item por item uma lista de reivindicações do Movimento dos Sem-Terra (MST). O resultado desse esforço pró-MST foi a publicação em outubro do documento da Secretaria-Geral da Presidência da República intitulado ‘Caderno de Respostas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra’.
O caderno extenso, de 160 páginas, revela que, além de agir em total sintonia com os sem-terra, o governo Lula (PT) já mudou normas e leis, por instrução normativa e por decreto, para restabelecer uma dinâmica de reforma agrária repleta de irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas da União no governo Dilma Rousseff (PT), e que tinham sido corrigidas nas gestões de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
Dentre os assuntos que demandaram respostas por escrito ao MST, estão até pautas políticas sem nenhuma relação com a reforma agrária, como legalização do aborto, direitos das pessoas LGBTQIA+ e pedido de revogação da Lei da Alienação Parental. Os sem-terra aproveitaram ainda para pedir patrocínios a feiras, seminários, campeonatos esportivos e caravanas culturais. Receberam orientações sobre possíveis canais de apoio e, pelo menos em relação ao patrocínio à Conferência Nacional de Beneficiários da Reforma Agrária de 2024, já obtiveram sinalização positiva de que a Secretaria-Geral da Presidência da República “seguirá nas tratativas com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra – órgãos finalísticos – para o atendimento a esta pauta”.
Além de declarar que a atual gestão do governo federal está empenhada em assumir a pauta do MST, os dois ministros que assinam o documento, Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário, e Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência, afirmam que o movimento “indica o caminho a seguir nas políticas públicas” e que o caderno de respostas foi uma “oportunidade singular de aprender-ensinar-aprender”.
Acampados ganham quatro vezes mais pontos na fila do Incra
Mais do que uma mera peça retórica, o caderno revela uma série de medidas já tomadas pelo governo Lula para atender aos sem-terra. Algumas atropelam recomendações do Tribunal de Contas da União, que devido a irregularidades no governo Dilma Rousseff chegou a suspender o processo de reforma agrária em 2016.
Ao assumir em janeiro, o atual governo tirou do ar a plataforma de governança territorial do Incra criada na gestão Bolsonaro que possibilitava que qualquer cidadão se candidatasse on-line para um lote da reforma agrária, em processo de seleção pública, com transparência e publicidade dos critérios para aprovação.
Em vez disso, voltaram agora as listas feitas nos acampamentos sem-terra e avalizadas pelo Incra. O governo restabeleceu ainda um sistema de seleção distorcido, que também já havia sido reprovado em fiscalização do TCU. No critério de pontuação dos candidatos, o decreto 11.637 de Lula, publicado em agosto, elevou de 5 para 20 pontos o crédito para quem estiver acampado, num claro estímulo às mobilizações para invasão.
Além disso, o governo informou que o mesmo decreto presidencial permite agora que associações ou cooperativas de assentados do MST recebam o título da terra, ignorando a proibição legal de inclusão de pessoas jurídicas como beneficiários da reforma agrária (Lei 8.629/1993). Na prática, é dar ao MST os títulos das terras e perenizar a subordinação dos assentados.
Em clara violação de constitucionalidade (vai além da mera regulamentação da Lei da Reforma Agrária), o decreto de Lula passa por cima do texto aprovado pelo Congresso em 1993 para dizer sem rodeios: “A vedação de titulação em nome de pessoa jurídica disposta no § 3º não se aplica a associações ou a cooperativas constituídas por assentados”.
Deputado aponta ameaça à propriedade privada
Na avaliação do deputado federal Evair de Melo (PP-ES), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), esse jeitinho para dar titulação coletiva da terra “é só um ensaio que o governo está fazendo para poder avançar na propriedade privada”.
“Daqui a pouco vão criar esse mesmo movimento para os sem-teto do Guilherme Boulos, que o Lula apoia em São Paulo. Essa titulação coletiva não existe no Brasil. Por enquanto é no rural, mas se isso passar despercebido, daqui a pouco vai ser ataque no urbano, com invasão de apartamentos, de condomínios, de prédios, de áreas urbanas”, alerta.
Em outro item das “Respostas ao MST”, o Incra dá a conhecer que revogou a IN 01/2019, do governo Bolsonaro, que condicionava o avanço das desapropriações à existência de recursos no Orçamento para indenização dos proprietários. Ou seja, mesmo sem dinheiro, o governo acena que pretende fazer desapropriações e empurrar a conta para frente, com precatórios. É a repetição do que já foi feito em mandatos anteriores, que acabaram deixando uma “herança” de R$ 6,2 bilhões em precatórios do Incra, pagos no governo Bolsonaro.
No texto de abertura do Caderno de Respostas ao MST, os ministros de Lula fazem apologia aos sem-terra como produtores de alimentos e que, “desde as suas realidades diversas e seus territórios, nos provocam com suas reivindicações, e ao mesmo tempo, nos indicam o caminho a seguir na execução das políticas públicas”.
Para sublinhar o empenho do governo em dar satisfação ao movimento, a metodologia do Caderno de Respostas é explicada: “consiste em receber a pauta de reivindicação dos movimentos, dar tratamento adequado às demandas propostas, distribuir para todos os Ministérios afins com prazo determinado de retorno e, por fim, sistematizar e entregar ao movimento solicitante”.
Cartilha de doutrinação dos ministérios
Poucas vezes se viu na administração pública um empenho tão articulado, envolvendo múltiplos órgãos do governo, para dar respostas a reivindicações setoriais.
“O mais grave disso, é que além de doutrinar as pessoas, eles querem agora doutrinar o governo. É uma cartilha de doutrinação dos ministérios: eles estão dizendo ‘quer ser meu ministro? A cartilha é essa’”, reage o deputado Evair de Melo.
O parlamentar protocolou requerimento de convocação para que os dois ministros que assinam a cartilha do MST se expliquem às Comissões de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) e de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR). Também informou que acionará a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal de Contas da União, para instauração de sindicâncias e auditorias.
“Está caindo a ficha das pessoas de que o governo Lula é refém desses movimentos clandestinos, irregulares, criminosos. Isso não é um fato isolado. Você vê a submissão do governo para enfrentar o Hamas; essa intimidade do Flavio Dino com o crime organizado, entrando em áreas de milícia; a questão da primeira-dama do tráfico, que escancarou de vez essa proximidade. O PT historicamente sempre cresceu a reboque e empurrado por esses movimentos clandestinos e revolucionários”, afirma o parlamentar.
O Caderno de Respostas é sintomático do governo atuando a reboque do MST, avalia Geraldo Melo Filho, presidente do Incra na gestão de Jair Bolsonaro.
“Na minha percepção, as ações que foram tomadas já tinham sido pautadas pelo MST. Quando publica agora, o governo dá a entender que estão pedindo uma coisa que ele já fez. Na verdade, se já tivesse feito quando o MST pediu, ele não teria pedido. Ou seja, o governo está mudando normas e tudo mais para atender o movimento”, destaca.
Em vez de regularização de posse, privilégio ao MST
Como se fosse uma conquista, o caderno de respostas do governo informa que o Incra revogou a Portaria 2445, de 15 de dezembro de 2022, e publicou a Instrução Normativa 132, de 27 de julho de 2023. A portaria anterior, diz o Incra, “privilegiava a regularização fundiária de posseiros em detrimento da criação de assentamentos”.
Para Melo Filho, a contraposição de posseiros aos sem-terra é artificial. Ele lembra que existe a Lei da Reforma Agrária e existe a Lei da Terra Legal, que diz que a titulação é direito de todo brasileiro em posse de uma área antes de 2008, que cultiva a terra e que nunca foi beneficiário da Reforma Agrária.
“Eu entreguei título em 2021 a uma senhora cujo processo original dela foi aberto em 1969. Uma senhorinha de 99 anos. Qual é a proposta, passar por cima, botar essa mulher para fora e fazer um assentamento do MST na área dela?”, questiona.
Uma das pautas do MST cobra o governo sobre a situação de 105 áreas emblemáticas de acampamentos em 23 estados. Em resposta, o Incra informa que está retomando todos os processos. Uma dessas áreas envolve a Fazenda Vera Cruz, em Craíbas, Alagoas. A propriedade está invadida há 17 anos. “Aqui está tudo irregular. Se a fazenda foi invadida, não pode ser assentada. E se for assentar 15 famílias, não podem ser essas famílias invasoras”, aponta Melo Filho.
Governo promete ao MST o que é proibido por lei
Ao fazer promessas ao MST, o governo cria expectativas que podem esbarrar tanto na legalidade quanto na falta de orçamento. Outra área cujo processo de desapropriação o Incra promete retomar é a Fazenda Brasileira, nos municípios de Ortigueira e Faxinal, no Paraná, com 10,6 mil hectares.
A fazenda está invadida, o que, por si só, já inviabiliza ser alvo de reforma agrária, conforme o § 6º, do art. 2º da Lei nº 8.629/1993: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações”.
Por outro lado, o Incra ainda reconhece que o imóvel é produtivo. “De novo, está tudo errado. Se a fazenda é produtiva, não pode ser desapropriação, tem que ser compra. Numa conta por baixo, são R$ 200 milhões para desapropriar aquela fazenda. Só isso come mais do que todo o orçamento do Incra”, constata Melo Filho.
Nesses dois exemplos, da Fazenda Brasileira e da Vera Cruz, a lei é clara. Por estarem invadidas, não podem ser destinadas à Reforma Agrária antes de se passarem dois anos da desocupação. Mesmo assim, o governo promete.
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