• Carregando...
O Meteorito Bendegó sucumbiria à burocracia brasileira, previu Machado de Assis
| Foto:

Cento e trinta anos separam a crônica da série “Bons Dias!”, publicada anonimamente por Machado de Assis na Gazeta Nacional, do Rio de Janeiro, em 1888 – depois passaria a ser uma série assinada e reunida em publicação literária – do incêndio que lambeu o personagem central do texto, testemunha da imbecilidade de burocratas que atravessa o tempo e os modismos ideológicos sem nenhum abalo e com o mesmo grau de periculosidade.

Naquela época, logo após a abolição da escravatura, quando tentava-se organizar uma República, que deveria ser federativa, o Brasil lutava não para implantar o federalismo em si, mas para lidar com a acomodação do poder de mando das oligarquias locais, as que detinham e detêm até hoje o poder nos Estados.

É em meio aos caprichos e idiossincrasias resultantes da manutenção dos pequenos poderes locais que o Império tenta fazer o traslado do meteorito de Bendegó, na Bahia, para a sede do Poder Imperial, no Rio de Janeiro, atravessando a comédia de entraves burocráticos daqueles que buscam nada além do exercício do pequeno poder diário, o mesmo enredo que levou o palácio a ruir em chamas 130 anos depois.

O meteorito é questionador, impaciente, atravessou o espaço, mal entende porque não pode atravessar uma rua, precisa de tanto carimbo, tanta lei, tanta coisa para ir daqui acolá. Vereadores tentam interditar a viagem, paga pelo Império. Todo o diálogo é travado com José Carlos Carvalho, membro da Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro e chefe da expedição encarregada de levar o meteorito da Bahia ao Museu Nacional, em quarenta juntas de bois. Um texto de 130 anos que continua atual.

 

BONS DIAS!

Cumpre não perder de vista o meteorólito de Bendegó. Enquanto toda a nação bailava e cantava, delirante de prazer pela grande lei da abolição, o meteorólito de Bendegó vinha andando vagaroso, silencioso e científico, ao lado do Carvalho.

– Carvalho, dizia ele provavelmente ao companheiro de jornada, que rumores são estes ao longe?

E ouvindo a explicação não retorquira nada, e pode ser até que sorrisse, pois é natural que nas regiões donde veio, tivesse testemunhado muitos cativeiros e muitas abolições. Quem sbe lá o que vai pelos vastos intermúndios de Epicuro e seus arrabaldes?

Vinha andando, vagaroso, silencioso, científico, ao lado do Carvalho.

– Carvalho, perguntou ainda, falta muito para chegar ao Ro de Janeiro? Estou já aborrecido, não da sua companhia, mas da caminhada. Você sabe que nós, lá em cima, andamos com a velocidade de mil raios; aqui nestas ridículas estradas de ferro a jornada é de matar. Mas espera, parece que estou vendo uma cidade…

– É a Bahia, a capital da província.

Chegaram à capital, onde um grupo de homens corria para uma casa, com ar espandado, preocupado, ou como melhor nome haja em fisionomia, que não tenho tempo de ir ao dicionário. Esses homens eram os vereadores. Iam reunir-se extraordinariamente, para saber se embargariam ou não a saída do meteorólito.

Até então não trataram do negócio, por um princípio de respeito ao governo central. O governo central ordenara o transporte e as despesas; a Câmara Municipal, obediente, ficou esperando. Logo, porém, que o meteorólito chegou à capital, interveio outro princípio – o do direito provincial. Reuniu-se a câmara e examinou o caso.

Parece que o debate foi longo e caloroso. Uns disseram provavelmente que o meteorólito, tendo caído na Bahia, era da Bahia; outros, que vindo do céu, era de todos os brasileiros. Tal foi a questão controversa. Compreende-se bem que era preciso resolver primeiro esse ponto, para entrar na questão se saber se os meteorólitos estavam na ordem das atribuições reservadas às províncias. O debate foi afinal resumido e o voto da maioria contrário ao embargo; apenas dois vereadores votaram por este, segundo anunciou um telegrama.

E o meteorólito foi chegando, vagoroso, silencioso, científico, ao lado do Carvalho.

– Carvalho, disse ele, os que não quiserem embargar a minha saída são uns homens cruéis. Mas por que é que aqueles dois votaram pelo embargo?

– Questão de federalismo…

E o nosso amigo explicou o sentido desta palavra, e o movimento federalista que se está operando em alguns lugares do império. Mostrou-lhe até alguns projetos discutidos agora, para o fim de adotar a constituição dos Estados Unidos, sem fazer questão do chefe de Estado, que pode ser presidente ou imperador…

Aqui o meteorólito, sempre vagoroso e científico, piscou o olho ao Carvalho.

– Carvalho, disse ele, eu não sou doutor constitucional nem de outra espécie, mas palavra que não entendo muito essa constituição dos Estados Unidos com um imperador…

Cheio de comiseração, explicou-lhe o nosso amigo que as intervenções constitucionais não era para os beiços de um simples meteorólito; que a suposição de que o sistema dos Estados Unidos não cmporta um chefe hereditário resulta de não atender à diferença do clima e outras. Ninguém se admira, por exemplo, de que lá se fale inglês e aqui português. Pois é a mesma coisa.

Entretanto, confessou o nosso amigo que, por algumas cartas recebidas, sabia que o que está na boca de muitas pessoas é um rumor de república ou coisa que o valhr, que esta ideia ainda anda no ar…

– Noire? Aussi blanche qu’une autre.

– Tiens! Vous faites de calembours?

– Que queria você que eu fizesse, retorquiu o meteorólito, metido naquelas brenhas de onde você foi me arrancar? Mas, vamos lá, explique-me isso pelo miúdo.

E o nosso amigo não lhe ocultou nada; confiou-lhe que andam por aí ideias republicanas, e que há certas pessoas para quem o advento da república é certíssimo. Chegou a ler-lhe um artigo da Gazeta Nacional, em que se dizia que, se ela já estivesse estabelecida, acabada estaria há muitos anos a escravidão…

Nisto o meteorólito interrompeu o companheiro, para dizer que as duas coisas não eram incompatíveis: porque ele antes de ser meteorólito fora general nos Estados Unidos – e general do Sul, por ocasião da guerra de secessão, e lembra-se bem que os Estados Confederados, quando redigiram a sua constituição, declararam no preâmbulo: “A escravidão é a base da constituição dos Estados Confederados”. Lembra-se também que o próprio Lincoln, quando subiu ao poder, declarou logo que não vinha abolir a escravidão…

– Mas é porque lá falam inglês, retorquiu o nosso amigo Carvalho; a questão é essa.

O meteorólito ficou pensativo; daí a um instante:

– Carvalho, que barulho é esse?

– É a visita do Portela, presidente da província.

– Vamos recebê-lo, acudiu o meteorólito, cada vez mais vagaroso e científico.

BOAS NOITES

Machado de Assis, 27 de maio, 1888

 

 

 

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]