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Um lamaçal de impunidade
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Hoje é um dia histórico: nunca antes na história desse país se teve a ideia de botar na cadeia responsáveis por assassinatos em massa decorrentes de tragédias evitáveis. É um primeiro passo louvável de uma trilha que, se realmente levada a sério, chegará nos principais responsáveis, os que mais lucraram e os que engendraram o plano de jogar com vidas humanas, no qual outros tantos embarcaram e que deu prejuízo à Vale.

Obviamente não se tem ainda certeza da culpa dos engenheiros presos hoje pelo massacre em Brumadinho, isso só ficará claro após o julgamento. E, creio eu, não tinham eles poder de decisão nem interesse o suficiente para decidir por uma lambança dessas. Aliás, o próprio Poder Público afrouxou as leis para que o empreendimento fosse possível e deu a autorização para que ele prosseguisse.

A grande questão é: será que pela primeira vez alguém vai preso por esse tipo de tragédia?

Um artigo excelente feito pelo Thiago Cordeiro para a Gazeta do Povo levanta com detalhes o que aconteceu com os responsáveis pelas principais tragédias ocorridas até hoje no Brasil. Ele lembra casos que hoje saíram da boca do povo e repousam apenas no imaginário de quem teve a vida e a família destruídas. Estão lá o vazamento de Césio 137, o desesperador incêndio da Vila Socó, o naufrágio do Bâteau Mouche e os mais recentes, incêndio na boate Kiss e a outra barragem ligada à Vale em Mariana. Revira o estômago ler os detalhes da responsabilização em cada caso. Com uma desculpa ou outra, ninguém fica preso.

Outro ponto é a indenização para as vítimas. A Vale agora anuncia que dará R$ 100 mil a cada família de vítima, já é muito mais do que aquilo feito pelas vítimas de Mariana e nem preciso recorrer ao clichê de que o dinheiro não substitui vidas. Obviamente, todo dinheiro é pouco para uma vida ceifada por uma tragédia evitável. A indenização é uma espécie de tentativa de compensação, de reparar o estrago irreparável. Ainda assim, as famílias de vítimas das maiores tragédias do Brasil receberam apenas indiferença.

Eu creio que há, em algumas pessoas, a crença de algumas vidas valem mais que outras. E não falo de Brasil, falo da alma humana.

Não somos os únicos a padecer da síndrome da avaliação de risco furada que pode provocar tragédias. O que impressiona é que o mal acomete mais os países em desenvolvimento onde, por praxe, os grandes empreendimentos têm mesmo muito mais valor que a vida dos habitantes. Ainda que isso jamais seja dito e, aliás, se diga o oposto, todo o marco legal para punição de quem viola o direito à propriedade é mais efetivo que aquele construído para punir a violação do direito à vida.

A TÜV SÜD Industrie Service GmbH, tratada como uma anônima “empresa terceirizada da Vale” é, na verdade, a segunda maior do mundo na área de certificação, testes e inspeções. Respeitadíssima na Alemanha, onde atua há 150 anos, é certificada pelo Comitê de Mudanças Climáticas da ONU para fazer as certificações, o que sem dúvida atesta a experiência e o prestígio da empresa.

Ainda assim, a empresa que atestou a segurança da barragem em Brumadinho, tem registros de certificações equivocadas, a ponto de ter suas credenciais suspensas pela ONU.

Não se trata de um problema da empresa em si, mas de uma visão de negócio do setor: tudo depende de quais vidas são atingidas. Assim, se as vidas colocadas em risco são aquelas das quais jamais ouviremos falar, desse gado que somos no andar de baixo da sociedade, é possível uma reabilitação gloriosa. A fina flor de cada sociedade nunca mora em zonas de risco evitável, isso é sempre para as vidas que valem menos. Daí que a flexibilidade na avaliação de credibilidade está necessariamente atrelada a essa diferenciação dos cidadãos. Não fosse, jamais uma empresa que colocou uma única vida em risco se habilitaria.

Em 26 de março de 2010, quando a empresa teve suspensas suas credenciais do Comitê de Mudanças Climáticas da ONU (clique para ver o documento original), a preocupação era justamente com a liberação de obras para as quais não havia total certeza de segurança. A revisão feita pelo UNFCCC concluiu que “em alguns projetos, uma validação positiva foi dada ainda que a equipe tivesse preocupações com alguns pontos adicionais”. Além disso, diz o documento, “as ações corretivas implementadas não foram satisfatórias”.

O principal problema da empresa contratada pela Vale era “dúvida sobre a habilidade de emitir um parecer sólido que não tenha sido influenciado por pressão indevida”, concluiu a ONU em 2010.

Também foi questionada a expertise dos técnicos em questão. “Os critérios de qualificação implementados pela TÜV SÜD não são satisfatórios. O Conselho conclui que 3 meses de experiência de trabalho na área em atividade setorial não garantem a confiança na competência do pessoal da empresa para fazer trabalhos relacionados ao Comitê de Mudanças Climáticas de acordo com os critérios de aprovação do Comitê de Mudanças Climáticas”.

O caso concreto não era de barragens, mas um entre alguns denunciados de laudos falhos para atestar créditos de carbono de empresas alemãs. Instadas a diminuir o nível de poluição de suas instalações ou elevar o imposto que pagam, essas empresas compram créditos de carbono de outras, em outros países.

Em um dos casos, descoberto numa reportagem investigativa da revista alemã GEO, A RWE (empresa alemã da área de energia) queria comprar créditos de carbono da hidrelétrica de Taijiang Yanzhai, na província de Guizhou, na China, para não precisar reduzir as emissões de suas usinas de carvão. A equipe de reportagem alemã foi até o local e constatou que os relatórios não conferiam com a realidade: a construção começou antes que o projeto da hidrelétrica fosse apresentado formalmente, não era livre de emissões e ainda violou os direitos dos fazendeiros locais, expulsos de suas terras à força.

Outra controvérsia foi na acreditação do “Multipropósito Baba“, uma obra prioritária do governo do equatoriano Lucio Gutiérrez que esbarrava em um pequeno detalhe para ser aprovada pelo Comitê de Mudanças Climáticas: o fator humano. Mesmo que esteja tudo tecnicamente certo, não há aprovação se houver ameaças consistentes ou tentativa de censura a vozes que se oponham a ele, de acordo com as regras da ONU. Ali, diferente do que atestaram a TÜV SÜD e suas contratadas, havia ameaças de morte à população local e 20 mil pessoas seriam afetadas, inclusive com mudança da qualidade da água.

A barragem para controle de enchentes e hidrelétrica foi construída e depois, por ironia do destino, veio se tornar um personagem equatoriano da nossa Operação Lava Jato. Um delator brasileiro atestou que a OAS simulou um gasto de US$ 9,1 milhões de contratação de consultoria, mas desviou o dinheiro para Andorra, numa conta de Roberto Trombeta, assessor contábil da empresa. O projeto também está na prestigiosa delação premiada de Marcelo Odebrecht, que confirmou ter pago propina a integrantes do governo equatoriano para viabilizar a obra. Nada disso, nem o desvio de dinheiro nem o problema que levou à necessidade de pagar propina, está nos laudos de vistoria.

Dois anos antes, o mesmo problema: certificação da Hidrelétrica de Changuinola I, no Panamá, para que pudesse entrar no mercado de créditos de carbono como compensação a uma usina de energia a carvão. A ONG Natural Resources Defense Council, com sede nos Estados Unidos e na China, chegou a enviar uma carta à TÜV SÜD mostrando por que se opunha à certificação da companhia.

Eu poderia ficar o dia inteiro colando links de situações semelhantes: existe um interesse forte, tanto governamental quanto privado, em uma obra e a vistoria é colocada sob suspeita por ambientalistas. Há quem diga que as reclamações são exageradas, há quem se apegue aos dados técnicos, há quem pense que existe fiscalização demais. O fato é que, nesse mercado, o da certificação ambiental, não é mancha indelével andar nessa linha fina da legalidade – e isso para todos os envolvidos, empresas e entes públicos.

Para se ter uma ideia, mesmo depois da suspensão na ONU, da TÜV SÜD permaneceu inabalada, inclusive com ambientalistas tido como “xiitas” pelo setor produtivo. Mesmo após a suspensão da credencial da empresa pela ONU, o WWF – World Wide Found – entidade que promove diversas ações de impacto pela preservação do meio ambiente em todo o mundo, deu a 2ª melhor nota possível avaliando empresas envolvidas com inspeção de pegadas de carbono. Uma publicação científica sobre o tema, Handbook of Carbon Offset Programs (clique para ver na íntegra), registrou o feito, largamente publicado pela imprensa alemã em 2010 justamente pela coincidência de dois fatos aparentemente opostos.

Aqui no Brasil, quando existe confronto entre a rigidez das regras e a falha de um projeto, mudam-se as regras. É o que fez o Estado de Minas Gerais.

Difícil alguém que não tenha visto o vídeo que viralizou, contendo uma montagem de 3 momentos diferentes do deputado João Vitor Xavier (PSDB-MG), apontando para a câmera da Assembleia Mineira e falando em tom solene que sua fala ficaria “gravada para a posteridade”. Então afirmou que o rompimento de barragens não era questão de “se”, mas de “quando”. Atestou que a situação era calamitosa, havia risco e propôs uma nova regulamentação, em comissão formada após a tragédia em Mariana.

O projeto foi derrotado com votos contrários dos 3 outros integrantes da comissão, deputados Tadeu Martins Leite (MDB), Thiago Cota (MDB) e Gil Pereira (PP). Os três afirmam até hoje, inclusive em suas páginas nas redes sociais, que foram praticamente obrigados pela realidade a vetar o projeto: ele inviabilizaria a mineração, principal fonte de recursos de Minas Gerais. Até agora, nenhum deles mostrou nenhum documento técnico atestando a afirmação – capaz que o façam na volta do recesso, quando o projeto volta novamente à pauta, só que sem as modificações feitas pelo substitutivo do deputado João Vitor.

É possível alegar que a Vale estivesse interessada em eventuais ganhos financeiros e, por isso, sacrificou vidas humanas. Se levada em conta a matemática, os fatos são mais complexos. Em um único dia na bolsa de valores a Vale perdeu mais dinheiro do que a mina de Brumadinho receberia em décadas. Era o tipo de risco que não compensa financeiramente nem sob o ponto de vista da credibilidade. Algo de muito errado aconteceu no meio do caminho e é isso o que se tenta apurar.

A Justiça de Minas Gerais determinou a prisão de 5 engenheiros, 3 da Vale e 2 da TÜV SÜD, por homicídio qualificado, crimes ambientais e falsidade ideológica.

No caso dos engenheiros da empresa alemã, a sentença da juíza Perla Saliba Brito, sustenta que “os documentos acostados demonstram que os representados ANDRÉ JUM YASSUDA, CESAR AUGUSTO PAULINO GRANDCHAMP e MAKOTO MANBA subscreveram recentes declarações de estabilidade das barragens, informando que aludidas estruturas se adequavam às normas de segurança, o que a tragédia demonstrou não corresponder o teor desses documentos com a verdade, não sendo crível que barragens de tal monta, geridas por uma das maiores mineradoras mundiais, se rompam repentinamente, sem dar qualquer indício de vulnerabilidade”. 

Para os empregados da Vale, há individualização do que dá causa às prisões. “Consta, ainda, dos documentos juntados, que o representado RICARDO DE OLIVEIRA, gerente de meio ambiente, saúde e segurança do complexo minerário, e RODRIGO ARTUR GOMES MELO, gerente executivo operacional responsável pelo Complexo Minerário Paraopeba, são responsáveis pelo licenciamento e funcionamento das estruturas, incumbindo-lhes o monitoramento das barragens que se romperam, ocupando funções de gestão e condução do empreendimento, sendo o acautelamento dos mesmos, também, imprescindível para a elucidação dos fatos e apuração da prática, em tese, dos crimes de homicídio qualificado que vieram à tona com o desastre ocorrido no Córrego do Feijão”, diz a sentença.

Como homicídio qualificado é crime hediondo, a prisão preventiva pode durar até 30 dias já na primeira decretação. É o que fez a juíza. É possível prorrogar a medida por mais 30 dias caso se comprove necessário. A prisão foi fundamentada no fato de indício de autoria do crime hediondo – homicídio qualificado – e na possibilidade de interferência nas investigações. Falei com diversos criminalistas hoje e todos consideram muito frágil a sentença – cheguei a ouvir mais de uma vez a palavra “surreal”. Ou seja, pode ser que as prisões durem bem menos no mundo real.

Mesmo presos, todos os 5 engenheiros podem fazer delação premiada se quiserem. Alguns juristas questionam a medida no caso de crime hediondo, mas já há precedente no TJ-RJ.

Pode repousar aí, na possibilidade de um delator, a esperança de desmantelar o castelo de areia que se transformou em um cemitério de lama. No entanto, eu pessoalmente considero muito difícil, talvez impossível que a Vale seja realmente atingida por sanções. O primeiro ponto é factual: a empresa realmente tem um laudo da 2ª maior empresa da área, reconhecida pela ONU e pelo WWF, dizendo que as barragens não corriam risco.

A não ser que se prove cabalmente alguma interferência indevida para obter esse resultado, o laudo da empresa fundamentou tanto as decisões da Vale quando a liberação da obra pelo Poder Público, que também pode – e deve – fazer suas próprias auditorias.

A Vale não é propriamente uma empresa privada, falando em regras de capitalismo, é uma jabuticaba, uma privatização controlada por órgãos estatais.

Todos estamos acompanhando o maior gargalo da Reforma da Previdência, principal desafio do presidente Bolsonaro: mexer nos privilégios do alto funcionalismo público. Ocorre que muitos desses funcionários, já prevendo que isso algum dia iria ocorrer, resolveram complementar suas aposentadorias. Por isso foram criados os Fundos de Pensão, como a Previ (Banco do Brasil), Funcef (Caixa Econômica Federal), Petros (Petrobras) e Cesp (empresa geradora de energia de São Paulo).

Adivinha quem é o maior acionista da Vale? Isso mesmo, os Fundos de Pensão desses funcionários públicos, por meio do fundo Litel, que é controlado por eles, e tem 19% das ações da empresa. E quem é o segundo maior acionista? O BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com 7,6%. Ou seja, qualquer pancada financeira na Vale é uma pancada direta tanto no governo quanto nas aposentadorias de funcionários públicos. Não creio que haverá pancada mais forte que a dada até agora e acredito ainda em suavização das medidas assim que o caso sair da imprensa. Não tenho nenhuma informação que justifique essa conclusão, é inspirada nas demais tragédias evitáveis.

Hoje se iniciou uma mesma tentativa de punição feita no caso de Mariana: processar nos Estados Unidos pelo FCPA, The Foreign Corrupt Practices Act.

Se a empresa tem capital aberto e negocia na bolsa dos EUA, como é o caso, pode ser enquadrada na “Lei Americana Anti-Corrupção no Exterior”. E aqui já entra algo que para nós soa muito estranho: corrupção não é só subornar agente público para obter vantagem, nem só aceitar a vantagem ou fazer deliberadamente algo intencionalmente criminoso. Para os norte-americanos a corrupção é mais ampla: deixar de fazer algo que deve ser feito, se omitir quando poderia agir, não saber o que deveria saber se ocupa determinado cargo. É uma diferença social brutal no conceito de responsabilidade.

Pelo teor do documento, traduzido em português pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, o conceito de responsabilidade é muito mais abrangente. Aliás, é descrito em pormenores e afasta todas as desculpas geralmente dadas por aqui. A lógica não é provar, acima de qualquer suspeita, que a pessoa realmente tinha consciência e/ou intenção de tal ação ou fato. É diferente, se está em determinada posição em que deveria ter consciência, a pessoa tem de provar que, apesar de seu poder efetivamente desconhecia as informações. Diz o FCPA:

(A) Considera-se uma pessoa “ciente” quanto a uma conduta, circunstância ou resultado, se

(i) essa pessoa percebe que ela está adotando tal conduta, que tal circunstância existe ou que tal resultado tem uma probabilidade substancial de acontecer; ou

(ii) essa pessoa tem firme crença de que tal circunstância existe ou que tal resultado tem probabilidade substancial de acontecer.

(B) Quando se exige conhecimento da existência de uma circunstância particular para a comissão de uma ofensa, tal conhecimento é estabelecido quando uma pessoa está ciente de que há uma alta probabilidade da existência de tal circunstância, a menos que a pessoa acredite de fato que tal circunstância não existe.

Dois escritórios já abriram o que se chama de “class action”, uma espécie de processo coletivo típico da Common Law, Bernstein Liebhard LLP e Rosen Law Firm. Eles iniciam o procedimento em favor de todos os acionistas lesados da Vale e têm um tempo determinado para que outras pessoas lesadas manifestem o interesse de ser incluídas na mesma ação.

No caso específico, são candidatos os que adquiriram ações entre 13 de abril de 2018 e 28 de janeiro deste ano. A data inicial foi determinada pela emissão de um relatório que os escritórios consideram não ter informado adequadamente os acionistas sobre riscos.Há uma ação semelhante sobre Mariana correndo na Justiça norte-americana desde 2015, ainda sem resultado.

Agora começa a gritaria por leis mais duras, critérios mais duros de fiscalização, criação de novos tipos penais. Eu pergunto: adianta? Nossas leis já são duras e a fiscalização é até excessiva segundo alguns, o problema é que, diante do descontentamento de algum poderoso ou se mudam as regras ou se alivia a aplicação delas. Pior que isso: não há nenhuma condenação social para quem lesa em massa. Enquanto quem é lesado violentamente vira um pária, o que perpetrou o malfeito dificilmente será segregado se continuar rico e não tiver uma rígida condenação penal.

Não é por falta de leis que vivemos num lamaçal de impunidade, é pela leniência ao aplicá-las, pela fragilidade moral do elemento humano envolvido nos mais diversos casos de destruição da vida. Sejamos realistas: não há lei nesse mundo que resolva a falta de vergonha na cara.

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