A República do “só a gente presta”

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Havia um risco evidente ao eleger um governo que não apresentava propostas concretas, mas um ritual diário de lacração e execração de alegados inimigos em redes sociais: o risco do cachorro nervoso. Sabe o cão irritado que segue carro na rua? O grande problema dele é o que fazer quando o carro para. Estamos precisamente nesse ponto, o carro parou, o cachorro obteve o que quer e não sabe o que fazer.

Depois de um discurso que embalou o país e colocou na lona os adversários outrora considerados gigantes, a equipe de Jair Bolsonaro ainda não entendeu o que é governar. Com raras e honrosas exceções, tanto o time do Executivo quanto a base no Legislativo, depois de derrotar adversários nas urnas precisa criar novos adversários para derrotar. E esses adversários passam a ser escolhidos entre os aliados, reduzindo cada vez mais o grupo de apoio.

Cada dia um aliado diferente escolhe inimigos entre o grupo de aliados, mostrando que entende-se muito de combater e pouco de construir o que o Brasil precisa.

Levou-se a lógica das redes sociais para dentro do governo. Quem faz “sucesso” nas novas mídias, esses realmente arrebatadores de multidão, são precisamente as pessoas que não têm nada a oferecer em termos de propostas ou construção além de se colocar contra os pensamentos alheios. Uma das grandes belezas da humanidade é que nada une os seres humanos tanto quanto o ódio.

Agora a bola da vez das hordas virtuais é Rodrigo Maia, justo ele que dias atrás foi o escolhido pelo próprio Jair Bolsonaro para receber o apoio de toda a base na candidatura à presidência. Como tão rapidamente ele passa de herói a vilão? É que não importam fatos, importa a adrenalina do combate. Os combatentes, no caso, arvoram-se no fato de não errar, já que só erra quem faz e eles não têm realizações a mostrar.

Dias atrás, os combatidos eram os militares. Hoje, em uma longa postagem na internet vinda de dentro do Palácio do Planalto, fala-se numa tentativa de isolar a ala “anti-stablishment” do governo, como se a expressão em si fizesse algum sentido lógico. O governo é o stablishment, se tem uma ala contra ele, é a que pretende derrubar o governo.

A política brasileira tem inúmeros defeitos, mas nada no nosso país se resolve fora dela, na força bruta. Inclusive já tentamos algumas vezes no passado recente e não conseguimos.

A autodenominada ala “anti-stablishment” do governo, quer por inexperiência ou por soberba, inspira-se em Fernando Collor, Jânio Quadros e Getúlio Vargas para clamar por um atropelo dos Poderes constituídos e uma tentativa de se aprovar as reformas prometidas pelo governo unicamente com base na manifestação popular, com o povo nas ruas. Não quero dar spoiler, mas as outras tentativas iguais não tiveram tanto sucesso assim.

Fora Michel Temer, agora preso, nenhum outro presidente da República da nossa história recente tem tanta experiência dentro do parlamento quanto Jair Bolsonaro. Eu realmente acredito que ele teria potencial para aprovar projetos de porte, como a Reforma da Previdência, sem ter de recorrer ao “toma-lá-dá-cá”. O problema é que isso exige trabalho duro de diálogo tanto para convencer da mudança dos métodos quanto para deixar claro qual é o método alternativo e não me parece que a base esteja disposta a trabalhar fora das redes sociais.

Aliado de primeira hora, o deputado Francischini Filho, jovem eleito presidente da Comissão de Constituição e Justiça, reclama da solidão na defesa do governo, muito presente na hora de cornetar nas redes sociais e muito ausente na hora de pegar no pesado. Havia um requerimento de convocação do ministro Paulo Guedes para explicar a Reforma da Previdência. Convocação é obrigatória e uma espécie de desrespeito, de desconfiança simbólica. Quando há confiança, se faz convite.

Pois bem, quase que passa a convocação de Paulo Guedes na CCJ por pura apatia dos líderes do governo que, em outras épocas, seriam chamados de “parlamentares-mariposa” porque ficam caçando luz de equipe de TV para sair falando. Foi Franschini Filho sozinho, por senso de dever e de lealdade, quem decidiu pedir aos colegas que mudassem de convocação para convite e foi atendido. Não foi procurado por nenhum líder do governo nem por nenhum representante do Ministério da Economia, que têm o dever de tratar dessas questões.

Por quê têm acesso direto ao alto escalão do governo justamente as pessoas que não estão dispostas a trabalhar por ele enquanto quem carrega o piano corre o risco até de execração pública?

É muito pouco tempo de governo para que sejam “descobertos” tantos traidores entre os aliados. Duvido que haja traidores, o que há é uma divergência de fundo sobre o que o grupo deve fazer. Enquanto uma parte lutou para chegar ao poder e exercê-lo de acordo com os próprios princípios, a outra lutou para chegar ao poder para continuar lutando para chegar ao poder, apenas isso. Agora que conquistaram o governo e posições no governo, continuam lutando para que suas próprias posições sejam mais valorizadas que outras posições. Em última análise, estão diariamente torpedeando o governo.

É verdade que os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro “contra tudo o que está aí”, mas é diferente ser oposição ao PT e conduzir um governo que seja, como querem os eleitores, oposto ao do PT. Uma vez no governo não basta criticar os antecessores, é necessário demonstrar com ações os próprios princípios e parece que há uma grande dificuldade em fazer isso.

O governo não tem se preocupado muito em agir, mas em estabelecer a República do “só a gente presta”, uma busca incessante por mostrar os defeitos dos outros e simular a própria perfeição.

O presidente da República embarcou na ideia de elogiar a prisão de Michel Temer atribuindo o fato a uma busca pela governabilidade feita da forma errada. É a continuidade do combate ao inimigo comum, o político tradicional, sem qualquer compromisso com os fatos. As acusações contra o ex-presidente remontam a 40 anos de atividade e não têm relação com o que disse o atual presidente, na tentativa de justificar o fracasso de sua articulação política.

O fato é que a articulação política do governo Bolsonaro não tem falhado porque é limpa demais, tem falhado porque é preguiçosa demais e falastrona, uma combinação explosiva. O presidente minimizou, mas já se sente a queda do apoio pela decepção. Muita gente votou no presidente exclusivamente para acabar com a era PT, sem jamais ter compactuado com o Ministério da Lacração Permanente nem com a máquina de assassinato de reputações de aliados que se recusam a ser capachos. O voto do poder econômico, aliás, nem foi em Bolsonaro, foi em Paulo Guedes.

Ao governo que propõe inovação e ruptura não basta falar nisso, é preciso fazer. E nada jamais será realizado por quem não apresenta serviço porque está ocupado numa guerrinha particular por poder que estraçalha o governo. Em campanha, as pessoas se apaixonam por conversa. Em governo, as pessoas se apaixonam por documento.

Jair Bolsonaro já disse até em entrevista que não tem lá muita vontade de aprovar a Reforma da Previdência e deixa isso muito claro na prática. Não sei se ele tem escolha nem se o Brasil tem escolha. O fato é que, enquanto são torpedeados os que têm ajudado a realizar aquilo que o país espera do presidente da República, são valorizados os que se dedicam à perfumaria: mudar emblema de passaporte, fazer avaliação ideológica de prova de estudante, censurar carteira de vacinação, criar uma discussão patética sobre o Hino Nacional e diariamente caçar novos inimigos imaginários.

É ruim para o Brasil que Jair Bolsonaro valorize justamente os que não respeitam a autoridade que lhe foi conferida pelo povo, colocando a luta individual por poder acima dos interesses da presidência da República. No entanto, sabe-se lá por quê, ele tem feito isso. Além de alertar, nos resta estourar a pipoca porque ainda tem muito filme por aí.