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Quanto vale uma vida brasileira?
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O mesmo Brasil que se mobiliza com ardor para debater o valor da vida quando o assunto é aborto permanece passivo frente a uma escalada de violência que vem tomando ares de normalidade. Este vídeo, para mim, é o retrato mais bem acabado dos efeitos da absoluta desvalorização da vida no nosso dia-a-dia.

A gravação é das câmeras de segurança de uma casa noturna em Águas Claras, no Distrito Federal, por volta das 3h da manhã do último dia 15 de abril. Mostra uma saraivada de tiros dada no meio de uma multidão por um agente da lei, pessoa que não apenas passou em todos os testes psicológicos para ter um porte de arma, mas que foi treinado para isso e carrega a arma para defender a vida e a liberdade de seus compatriotas.

Não é o que ele faz. Após um bate-boca de madrugada na casa noturna, ele simplesmente começa a disparar de forma incessante, pegando em quem pegasse, para acertar as contas com o tenente Herison Oliveira Bezerra, da Polícia Militar do Distrito Federal. O PM revida os tiros na mesma intensidade, mas acaba assassinado. O festival de disparos dos dois fere uma mulher que não tinha nada com o assunto.

Basta ver o vídeo para compreender o que ocorre: a barbárie. Não há justificativa para que dois homens da lei, representando instituições que detêm o monopólio da violência no país, saquem as armas que possuem para defender os demais e, durante um rompante de sabe-se lá que emoção, atirem freneticamente.

É o mesmo espírito presente em uma situação igualmente chocante e completamente diferente: o fuzilamento de um músico que passava na frente de uma base do Exército no Rio de Janeiro. Ao condenar o ato, cheguei a ser confrontada por internautas que tinham uma justificativa para os 80 tiros de fuzil contra um carro com uma família e um menininho de 7 anos dentro: ele teria tentado fugir porque estava sem carteira e com IPVA atrasado. Isso poderia justificar 80 tiros de fuzil contra gente desarmada?

Uma sociedade que tem desenvolvido fixação por armas de fogo como solução para todos os problemas acaba esquecendo que o bem maior não é o poder, é a vida humana.

Tivemos reações vergonhosas, inclusive de autoridades públicas, quando os valorosos policiais militares de São Paulo, no cumprimento do dever, mataram 11 assaltantes de banco portando armamentos de alto calibre. Há quem trate o assunto como se o policial tivesse prazer de matar ou como se o dever dele fosse essa pena de morte instantânea, um reflexo direto da falta de valorização da vida – e não dos bandidos, mas dos cidadãos e dos próprios policiais.

Ao contrário das Forças Armadas, treinadas para guerra, o policial não tem inimigos a combater: ele defende a sociedade. É um absurdo parabenizar pelas mortes quando o grande feito é ter evitado que tantas outras vidas fossem colocadas em risco. Ainda que tenha sido necessária uma medida extrema, justificada pelo perigo iminente que era ali representado, só os sociopatas se sentem satisfeitos ao tirar a vida de outro ser humano, por mais necessário que o ato seja para proteger outros.

É na naturalização desse discurso que dá mais importância à vingança em forma de morte do que ao sucesso absoluto em proteger vidas que estamos sufocando os princípios de valorização da vida no Brasil.

De alguns anos para cá, partimos para um debate sobre porte de arma de fogo feito sob o pior ponto de vista possível, o de transformar o cidadão em Rambo, de confundir agressividade com masculinidade e de idolatrar o amadorismo. O centro de tudo passou a ser a “legítima defesa”, alegada por gente completamente despreparada que, quando muito, vai a academia de tiro, jamais foi cobrada por resultados efetivos em políticas de segurança pública.

Existe uma discussão séria que precisa ser feita e é mais teórica do que prática. Aliás, o nível da teoria nesse debate é aquele em que se enquadra a absoluta maioria dos cidadãos, já que a experiência prática da defesa com arma de fogo faz parte do repertório de pouquíssimas pessoas. São essas as que podem debater a prática, a legítima defesa. Os demais podem se expressar, obviamente, mas não há razão para que suas ilusões sejam levadas a sério quando estamos falando de vidas humanas.

A teoria é um ponto muito específico: o Estado deve ou não deve ter o monopólio do uso da força e da violência? Qualquer que seja a resposta, podemos pensar em quais são as consequências de cada modelo.

Essa discussão coloca a bola de volta no chão para prosseguir o jogo. O importante são as vidas, as pessoas, a harmonia da sociedade. Numa sociedade que tem como único valor nacional comum o consumo, é muito fácil que a um objeto do desejo seja dado o condão de resolver problemas que ele não resolve. Elege-se a arma de fogo como panacéia, faz-se a catarse contra as instituições dizendo que elas nos enganam porque não nos querem dar o objeto, surge o imaginário de ser mais poderoso ostentando o objeto e ele passa a ser o centro da discussão, não as pessoas.

Quanto mais esse discurso ganha força, impulsionado inclusive por gente famosa e poderosa, menos valem as vidas dos brasileiros. Hoje, o monopólio da violência é do Estado, outorgado na ponta final a agentes da lei selecionados e treinados para usar armas de fogo em defesa da vida e da liberdade de seus compatriotas, testados periodicamente, duramente sancionados a cada excesso. E já entre eles há os que não vêem mais a vida como o centro de suas ações.

Nos casos citados aqui, o centro das ações foi o uso da arma de fogo como demonstração de poder, a mesma lógica utilizada pelos que ceifam 60 mil vidas brasileiras a cada ano pelos motivos mais banais. Precisamos virar essa chave antes que comecem a se empilhar os casos de assassinatos banais cometidos por aqueles que receberam armas de fogo justamente para proteger a sociedade.

Diz a Constituição Federal que Segurança Pública é dever do Estado e responsabilidade de todos. Isso começa nos debates do dia-a-dia. Precisamos parar de contribuir para a construção de um modelo de país em que a vida humana está passando de bem maior a descartável.

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