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Mulher condenada por roubo e Adriana Ancelmo conseguiram a prisão domiciliar. Mas os caminhos para ambas foram bem diferentes.
Mulher condenada por roubo e Adriana Ancelmo conseguiram a prisão domiciliar. Mas os caminhos para ambas foram bem diferentes. | Foto:

Um saudável debate surgiu no Judiciário brasileiro. E, quem diria, foi nas redes sociais, aos olhos de todos – em si só um avanço para um poder que em geral é visto como o menos permeável à crítica, o que menos se expõe, e até como o menos democrático.

A discussão tem relação com a “meritocracia”. Ou, se formos falar m português mais simples: tem a ver com quem consegue chegar a ser juiz no Brasil. De um lado, há juízes que acreditam que há uma injustiça e que praticamente o Estado garante que só os mais ricos cheguem aos melhores cargos. De outro, há quem diga que tudo é uma questão de esforço pessoal.

Quem começou no debate no Facebook foi uma juíza paranaense, Fernanda Orsomarzo. Ela relativizou os próprios méritos por ter passado em um concurso difícil. Nasceu em uma família estruturada, teve três refeições por dia, nunca enfrentou racismo, pôde estudar e, portanto, saiu com uma vantagem enorme sobre grande parte da população.

“O mérito não é meu. Na linha da corrida em busca do sucesso e realização, eu saí na frente desde que nasci. Não é justo, não é honesto exigir que um garoto que sequer tem professores pagos pelo Estado entre nessa competição em iguais condições. Nunca, jamais estivemos em iguais condições”, disse, num post que foi compartilhado milhares de vezes.

O ponto de vista dela foi rebatido de maneira veemente por uma juíza mineira, Ludmila Grilo, que já de cara começa dizendo que Fernanda não representa a maior parte da magistratura até por participar de um agrupamento “marxista”, a Associação Juízes para a Democracia, que, segundo ela, é repudiado pela maior parte dos juízes.

Assim como sua oponente, Ludmila conta com seu exemplo pessoal para defender um ponto de vista. Mas a história é o avesso e o ponto de vista é totalmente diferente. Ludmila diz que nasceu em situações bem mais adversas, à beira de uma favela no Rio, que tem até cicatriz de tiro e que passou a vida se preparando para o concurso lendo em ônibus. Nada de vida mansa.

Ela diz que a colega de profissão estimula a revolta e o ódio contra o Estado, enquanto ela prefere estimular as pessoas a se esforçarem tendo “fé e otimismo”.

“Enquanto a Fernanda diz que só é juíza porque também recebeu um ‘empurrãozinho’ da vida, eu te digo que esse empurrãozinho não é necessário: você pode começar do zero. Não temos castas no Brasil. Um rico pode ficar pobre e um pobre pode ficar rico. Enquanto a Fernanda te diz que você deve esperar tudo do Estado, eu te digo que você não deve esperar NADA do Estado. Levante-se! Faça você mesmo! Come on!”

Em termos mais abstratos, Fernanda está defendendo o ponto de vista (nada marxista) de John Rawls, o grande filósofo autor de “Uma Teoria da Justiça”. Rawls diz que para haver verdadeira democracia é preciso que os cargos mais bem remunerados de uma sociedade têm que estar verdadeiramente “abertos a todos”.

Ou seja: não basta dizer que “qualquer um “pode chegar lá” quando na verdade muita gente sai com enorme vantagem. É evidente que as chances de gente como Fernanda são muito maiores e cabe à sociedade (por meio do Estado) corrigir minimamente essas distorções ajudando que parte mais de trás (dando educação pública de qualidade e, entre outras coisas, fazendo políticas afirmativas de cotas, por exemplo).

Ludmila está defendendo o ponto de vista liberal, de autores que desconfiam da ação do Estado e que acham que toda essa conversa de cotas é um modo de desestimular as pessoas do empenho que é realmente o que diferencia uns dos outros. No limite, é a visão que vê como “coitadismo”, como “vitimismo” a ideia de que algumas pessoas precisam de mais apoio do que outras.

Os dois pontos de vista são cruciais para discutir a nossa sociedade. E embora seja legítimo defender o mérito e o empenho, os dados socioeconômicos (especialmente sobre o Brasil) mostram que defender apenas o esforço pessoal ajuda a manter não um sistema de “castas” propriamente, mas a garantir a permanência da desigualdade ao longo das gerações.

Ou seja: não ter políticas de redução de desigualdade significa que as mesmas famílias se manterão ao longo do tempo no poder e que os mais pobres estão de certa maneira destinados a continuar pobres. Claro que  há exceções. Ludmila parece ser uma delas. Mas não se pode pensar uma sociedade por suas exceções.

Silvio Santos saiu de camelô para bilionário. Nem por isso vamos ser ingênuos de achar que muitos mais camelôs virarão donos de tevês ou que isso só não acontece com mais frequência por falta de esforço deles.

Outros pobres enriqueceram, claro. Mas pense no nosso Executivo, por exemplo: hoje, no Paraná, o prefeito de Curitiba é filho de um prefeito e o governador, filho de um governador. No Judiciário, não é diferente. Para cada Ludmila, quantos filhos e netos de desembargadores entram na carreira da magistratura?

Evidente que eles partem na corrida com uma imensa vantagem. As outras pessoas pobres que estudam nos ônibus talvez não tenham a inteligência de Ludmila, ou talvez não tenham a mesma sorte. Muito da vida, diz Rawls, é loteria. Mas apostar que o sujeito que teve azar na loteria inicial da vida vai ter de depender de uma situação excepcional para escapar da pobreza é, no mínimo, cruel.

Dados mostram que o Brasil é um país especialmente desigual e com um nível excepcionalmente baixo de mobilidade social de uma geração para a outra. Um estudo de Alan Krueger, de Princeton, mostra que isso não acontece por acaso. Quanto mais desigual o país, maior o imobilismo. É o que ele chama de Great Gatsby Curve. O Brasil aparece bem mal no estudo. (Quanto mais à direita, mais desigualdade; quanto mais para cima, menor a mobilidade.)

Outros estudos bacanas mostram como mesmo fazendo tudo certo, quem nasce pobre tem grandes chances de continuar atrás de ricos que fazem tudo errado na escola. Sem falar no clássico livro de Thomas Piketty, o Capital no Século 21 (que também não é marxista) e que mostrou os mecanismos de perpetuação da riqueza ao longo do tempo.

É altamente positivo que o debate tenha começado. É uma pena que alguns argumentos devam ser evitados (como a acusação de marxismo a qualquer um que não seja liberal). É debatendo esse tipo de questão que o Judiciário e nossa sociedade vão melhorar.

Leia mais: Meritocracia: o risco de achar que os pobres são vagabundos

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