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Foto: Nelson Almeida/AFP
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Pode-se suspeitar da conversão de Jair Bolsonaro (PSL) ao liberalismo econômico – basta observar seu histórico de declarações e a forma como ele votou projetos de teor econômico em seus 27 anos de Câmara dos Deputados.

Pode-se questionar se a carreira militar do candidato foi tão virtuosa quanto ele dá a entender – sua atuação “sindicalista” no Exército, que o catapultou à vida pública, ficou célebre por episódios de indisciplina.

Pode-se estranhar a insistência com que o capitão reformado fala em Deus – porque também é com insistência que ele promove a intolerância e elogia a tortura e o assassinato, coisas que, salvo engano, não constam da lista de valores cristãos.

Pode-se ficar com um pé atrás a respeito de sua alardeada retidão – o deputado não comprovou qual a atividade parlamentar de Walderice Santos da Conceição, que era empregada de seu gabinete mas passava o expediente vendendo açaí.

O que está fora de questão é o desprezo de Bolsonaro pela democracia. Nisso, ele sempre foi coerente. Deu inúmeras declarações nesse sentido desde o início da carreira e segue a mesma linha às vésperas da eleição, sempre enfático, contundente.

A lista é longa e repetitiva, mas uma entrevista que ele deu em 1999 faz uma boa síntese de suas opiniões a respeito do tema. Na mesma conversa, o deputado anunciou que: 1) “daria o golpe no mesmo dia” em que assumisse a Presidência, fechando o Congresso Nacional – e eliminando, portanto, a função de contrapeso exercida pelo Poder Legislativo); 2) “através do voto você não vai mudar nada nesse país”; 3) o país só mudará “no dia em que partir para uma guerra civil”, “fazendo o trabalho que o regime militar não fez”, “matando uns 30 mil, começando pelo FHC”.

Mais recentemente, Bolsonaro propôs a ampliação no número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de 11 para 21, o que o ajudaria a consolidar maioria na Corte e eliminar o contrapeso do Poder Judiciário, a exemplo do que fez Hugo Chávez na Venezuela.

O deputado também voltou a levantar a hipótese de fraude nas urnas eletrônicas, supostamente para prejudicá-lo e favorecer o PT. Autodeclarado vencedor, questiona desde já qualquer resultado que não seja a sua vitória e joga suspeita sobre todo o processo eleitoral, do qual ele – eleito para sete mandatos na Câmara, dos quais cinco por meio de urnas eletrônicas – participa porque quer. Estranhamente, Bolsonaro jamais indicou representante para participar dos três testes públicos realizados desde o ano passado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para encontrar falhas no sistema.

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Com Bolsonaro no hospital, seu candidato a vice assumiu o protagonismo na disseminação de propostas antidemocráticas. General Mourão, que andou defendendo intervenção militar antes de entrar para a política, incorporou o papel com tranquilidade. Um dia depois do atentado contra o cabeça de chapa, Mourão admitiu a hipótese de um “autogolpe”, em que o presidente convocaria uma intervenção das Forças Armadas em caso de “anarquia” – e nesse caso a definição de anarquia ficaria a cargo, claro, do próprio presidente.

A Constituição obviamente não prevê nada do gênero. Mas até para isso parece existir “remédio”. Dias depois de falar em autogolpe, Mourão defendeu a elaboração de uma nova Constituição, formulada não por representantes eleitos pelo povo, mas sim por uma comissão de “notáveis”. Caberia à população apenas concordar ou não com o pacote fechado da nova Carta por meio de um plebiscito*.

Voltando ao capitão, a própria visão dele sobre o que é ditadura e democracia é míope. Sustenta que jamais existiu ditadura militar, algo que participantes do próprio regime não viam problema em admitir – basta, por exemplo, conferir o áudio da reunião em que o governo Costa e Silva decidiu emitir o Ato Institucional Número 5 (AI-5)**. Ao mesmo tempo, Bolsonaro parece entender a democracia como a tirania da maioria. “Minoria tem que se calar, se curvar à maioria”, disse ele em 2014, quando pretendia assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. “Eu quero respeitar a maioria, não a minoria.”

É preciso lembrar que o partido que pinta como concorrente de Bolsonaro no segundo turno, segundo as pesquisas mais recentes, também tropeça feio na democracia. O que, por sinal, dá uma ideia do que pode estar à nossa espera daqui a algumas semanas.

O PT de Fernando Haddad se aliou a ditaduras como a cubana e a venezuelana, apregoava até pouco tempo atrás que “eleição sem Lula é fraude” e propõe uma nova Constituinte para “assegurar as conquistas democráticas” da Carta atual, a mesma que o partido se recusou a assinar. Lula já defendeu que um partido adversário – no caso, o DEM – fosse “extirpado” da política. E os escândalos do Mensalão e do Petrolão revelaram o tamanho da disposição do partido em se manter no poder, financiando apoios no Congresso e campanhas eleitorais.

Ainda assim, não há quem seja tão explícito em sua intenção autoritária, em sua intenção de subverter a ordem constitucional, quanto a chapa Bolsonaro/Mourão. Não que isso importe para a maioria de seu eleitorado – quem pretende elegê-los provavelmente o faz por causa do que eles falam, e não apesar do que falam.

O pouco caso com a democracia não é restrito aos eleitores do candidato do PSL. Na verdade, 38% dos brasileiros não fazem muita questão dela, segundo pesquisa feita pelo Datafolha em setembro de 2017 – 21% disseram que “tanto faz” se o governo é democrático ou ditatorial e 17% consideraram que em certas circunstâncias a ditadura é melhor. O apoio à ditadura e o “tanto faz” têm crescido. Em 2016 eles somavam 31% e, dois anos antes, 27%.

Conforme a pesquisa, a preferência pela democracia cresce conforme aumenta o grau de escolaridade e a renda dos entrevistados: 76% dos mais instruídos e 73% dos mais ricos acreditam que a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo.

O curioso é que a intenção de voto em Bolsonaro segue o mesmíssimo padrão: a preferência por ele é maior justamente entre os mais ricos e instruídos. Segundo o mais recente levantamento do Datafolha***, 28% dos brasileiros pretendem votar nele. Quando se considera somente os que têm ensino superior, esse porcentual sobe a 38%. E, entre os que ganham mais de dez salários mínimos por mês, 40% preferem o deputado.

Será que existem eleitores de Bolsonaro que apoiam a democracia? Se existirem, convém prestar mais atenção ao que ele fala. Depois, não digam que ele não avisou.

*Quando fala coisas assim, Mourão ressalta que essa é sua visão, não necessariamente a de Bolsonaro. Mas a história brasileira – em especial a história recente – mostra que não podemos desprezar o que pensa e diz o vice. O próprio general andou desautorizando o capitão. Ao comentar o que Bolsonaro insinuou sobre as urnas eletrônicas, Mourão pediu aos jornalistas que relevassem “um homem que praticamente morreu, quase morreu, há pouco mais de uma semana”. “O cara tá fragilizado”, disse, segundo o relato do “Valor Econômico”.

 **Naquela reunião, o vice-presidente Pedro Aleixo – único entre os 24 participantes a votar contra o AI-5 – disse o seguinte: “Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é (…) instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura (…) Do ponto de vista jurídico, eu entendo que, realmente, o Ato Institucional elimina a própria Constituição”. O ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, afirmou: “Também confesso, como o vice-presidente da República, que realmente, com este ato, nós estamos instituindo uma ditadura. E acho que, se ela é necessária, devemos tomar a responsabilidade de fazê-la”. Emílio Garrastazu Médici, então chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI) e futuro presidente da República, considerou que Costa e Silva poderia ter agido antes: “Acredito, senhor presidente, que, com sua formação democrática, foi Vossa Excelência tolerante por demais”. Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho, disse o seguinte ao presidente: “Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim, e creio que a todos os membros deste conselho, enveredar para o caminho da ditadura pura e simples, mas parece que claramente é esta que está diante de nós (…) Eu admitiria que ela [nossa ordem jurídica] é ditatorial. Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência”.

***Metodologia: Pesquisa realizada pelo Datafolha de 18/set a 19/set/2018 com 8.596 entrevistados (Brasil). Contratada por: REDE GLOBO E FOLHA DE S. PAULO. Registro no TSE: BR-06919/2018. Margem de erro: 2 pontos percentuais. Confiança: 95%. *Não sabe / Não respondeu

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