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“O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano (…) O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando não o somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que não o somos.” (Fernando Pessoa)

No meu artigo de duas semanas atrás, abordei a má influência que um certo esnobismo acadêmico fundado na aversão dogmática ao senso comum exerce sobre os calouros de ciências humanas, cuja personalidade intelectual é deformada logo nas primeiras semanas de curso, quando aquele professor metido a iconoclasta pede-lhes que abdiquem de todo conhecimento adquirido, das tradições familiares e do próprio discernimento em favor da última moda intelectual.

Hoje quero falar sobre o destino de um daqueles calouros universitários – no caso, de comunicação. Chama-se Ruan de Sousa Gabriel, e é de sua autoria uma recente matéria da revista Época sobre o psicólogo canadense Jordan Peterson, fenômeno da internet, cujo livro 12 Regras para a Vida está para ser lançado no Brasil pela editora Alta Books. Esclareço não conhecer pessoalmente o jornalista, o que não nos servirá de empecilho, pois, intelectualmente falando, intuo não ser ele propriamente uma pessoa (no sentido de possuir uma consciência autônoma e uma personalidade própria), mas um tipo, bem característico, aliás, do meio universitário contemporâneo.

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A reportagem sobre Peterson serve de fonte para quem se interesse pela psique coletiva da fauna acadêmica brasileira e, mais particularmente, pelo microcosmo das faculdades de Jornalismo. Dizendo pouco ou quase nada de seu pretenso objeto (a depender da matéria, o leitor continuará sem conhecê-lo), é altamente reveladora da visão de mundo da atual geração de jornalistas brasileiros, que encaram a profissão, e a si mesmos, de maneira peculiar.

Educados desde cedo para serem parteiros de um mundo melhor, tais jornalistas concebem toda a sua atividade à luz dessa meta. A história pregressa da humanidade se lhes afigura como cenário de um combate perpétuo entre algozes e vítimas, compreendidos como categorias coletivas que ocupam posições historicamente invariáveis. Com autoimagem superestimada (nutrida por décadas de uma cultura de lisonja à juventude), gostam de se exibir como representantes das vítimas históricas. Daí que, para eles, o jornalismo seja menos um trabalho de reportar a realidade que de transformá-la. Em vista disso, não há informação que não possa ser distorcida, amputada, omitida ou fabricada em benefício da nobre causa de corrigir as injustiças do mundo.

Foi imbuído desse espírito que o jovem repórter da Época abordou Jordan Peterson. Nota-se, desde o título até a última linha, que a matéria jamais teve por objetivo informar os leitores sobre esse importante intelectual contemporâneo, mas, ao contrário, preveni-los de antemão contra o seu pensamento. Decerto circularam na redação boatos sobre o psicólogo, suficientes para situá-lo no campo oposto ao dos justiceiros sociais que ali habitam. “Não é dos nossos” foi, provavelmente, a palavra de ordem que orientou toda a concepção da reportagem, cuja manchete descreve o canadense como “intelectual testosterona”, e cujo lead atribui a sua fama ao fato de “atacar o feminismo e direitos dos transexuais com um discurso que acalenta os machos” (grifos meus). No corpo do texto, Peterson é também caracterizado como “obscuro intelectual conservador”, o que não chega a surpreender, pois, para além do pequeno círculo que a luz de led lança sobre a redação, esse Welt protegido e encantado, tudo lá fora aparece como obscuro e assustador.

Para entender os motivos da caracterização de Peterson como um machão brutamontes, o leitor deve ter em mente que o autor da matéria é aquilo que se convencionou chamar de feministo: o sujeito do sexo masculino que acredita na teoria da luta dos sexos, uma versão da luta de classes segundo a qual, em toda parte, e nas mais variadas épocas, as mulheres foram sempre subjugadas pelos homens. Concebendo a diferença sexual dessa maneira politizada, e mortificando-se por pertencer ao “sexo explorador”, o feministo faz como fizeram tantos burgueses culpados ao longo da história (a começar por Engels): passa a dedicar-se apaixonadamente à expiação de sua culpa coletiva, espécie de maldição intrínseca ao cromossomo Y. Politicamente falando, é como se trocasse de sexo, num processo que não seria absurdo chamar de transgenderismo ideológico.

O sujeito que experimenta essa ruptura da consciência torna-se condescendente em relação às mulheres, sentindo-se na obrigação de afirmar a todo instante, do alto de seu palanque existencial, a sua decisão de mudar de lado e tornar-se um novo homem, mais evoluído, sensível, voluntariamente desvirilizado e liberto do fardo da masculinidade arcaica. Para o repórter, Jordan Peterson simboliza essa velha masculinidade da qual é preciso se livrar para a construção de um mundo melhor, no qual a relação entre homens e mulheres será perfeita. No texto, essa masculinidade tóxica e obsoleta aparece materializada no excesso de testosterona metaforicamente atribuída ao pensamento do psicólogo. Para o jornalista feministo, isso estaria ajudando a ressuscitar o velho homem patriarcal e dominador, que, segundo a lei inexorável da filosofia lacradora da história, já deveria estar morto e enterrado. Tal “persistência do passado”, para usarmos a expressão de um outro progressista, Mao Tsé-tung, exaspera o jornalista e seus colegas de redação. Mas como, ao contrário do ditador chinês, não dispõem dos meios de apagar o velho homem mediante violência física, resta-lhes dispor de seu espaço na mídia para uma amarga vingança retórica.

Em seu libelo contra o intelectual canadense (pois é disso que se trata, afinal), o repórter da Época, assumindo sem corar o papel de crítico, lança mão de uma série de imagens estereotipadas, que evocam noções como as de mau humor, carranca, irritação e grosseria. Peterson, “apóstolo da testosterona”, é descrito como um homem “de olheiras pesadas”, “cara de sogro turrão”, “combatente furioso” do pós-modernismo, alguém que avalia com “histeria” as ameaças do politicamente correto. Não bastassem os seus terríveis modos e aparência, esse sujeito desagradável teve ainda a ousadia de invadir o espaço público do “liberalíssimo e calmo Canadá”, uma espécie de paraíso progressista governado por Justin Trudeau, o príncipe dos hipsters e feministos, cujo “novo tipo de masculinidade (mais afável, feminista e amiga das minorias)” é a antítese perfeita da masculinidade arcaica. Trudeau, descrito na matéria como “bonito e sensível”, dotado do “charme de um imberbe Fidel Castro em ternos finos e meias coloridas”, aparece, portanto, como o anti-Peterson, um novo modelo de homem que já deveria ter se tornado hegemônico não fossem aparições extemporâneas e indesejadas, no estrato geológico da cultura, de fósseis intelectuais como o professor da Universidade de Toronto.

O que o repórter não diz aos leitores, evidentemente, é que o “liberalíssimo e calmo Canadá” só é liberal e calmo para quem adere incondicionalmente à agenda politicamente correta. Afinal, depois da Lei C-16, por exemplo, contra a qual Jordan Peterson se insurgiu, a liberdade de referir-se a um transexual com o pronome correspondente ao seu sexo real de nascimento, e não ao gênero com o qual subjetivamente se identifica, foi suprimida por força da lei. Foi também no “liberalíssimo Canadá” que Peterson se viu diversas vezes cercado por agressivos militantes LGBT, que, aos berros e ruídos sonoros, tentavam proibi-lo de falar em palestras e conferências. Que uma estudante da Universidade de Ryerson (Toronto) foi impedida por um professor de questionar a tese da diferença salarial entre homens e mulheres, sob o argumento de que, em vez das estatísticas machistas do mundo dos negócios, deveria ter consultado fontes feministas. Que um professor da mesma universidade foi acusado de racismo e misoginia por um grupo ativista autoproclamado “Coletivo de Libertação dos Negros”, apenas por ter abandonado o recinto em que uma estudante negra palestrava. Que outro professor, dessa vez da Universidade Wilfrid Laurier, foi repreendido por mostrar vídeos nos quais o uso do pronome neutro de gênero era debatido. Que um aluno da Universidade Mount Royal foi intimado por uma colega, sob acusações de propagar “discurso de ódio”, a retirar um boné de apoio a Donald Trump, boné que acabou sendo arrancado à força por outro colega.

Enfim, os exemplos poderiam se multiplicar sobre o que se passa hoje no ambiente universitário do “liberalíssimo e calmo Canadá”. Mas o repórter da Época é cego para essa realidade, simplesmente porque a visão hegemônica ali coincide com a sua. É como se, para ele, o Canadá fosse uma gigantesca redação de jornal, um safe space onde feministos e outros fiscais do politicamente correto podem viver entre iguais, com seus piercings na língua, cabelos roxos e meias coloridas, na mais perfeita Pax canadense. Tudo calmo. E liberalíssimo.

Tendo tido acesso às questões do jornalista a Jordan Peterson, a brilhante intelectual Camille Paglia, pioneira dos estudos de gênero e sexualidade, mostrou-se indignada com o seu teor ideológico e malicioso. Escreveu ela em resposta à revista brasileira:

“Penso que é completamente absurdo chamar Jordan Peterson de ‘conservador’ ou ‘direitista’. Esse disparate é pura propaganda usada como arma por ideólogos inescrupulosos para tentar destruir pensadores independentes ou dissidentes, que não seguem a ‘linha partidária’. Peterson é um analista cultural profundamente erudito. Reduzir o trabalho dele a fórmulas políticas simplistas mostra exatamente o que há de errado com o pensamento no mundo ocidental hoje (…) Peterson definitivamente não é antigay nem antitransgênero (descrevo-me como transgênero – é uma fonte primária do meu próprio pensamento sobre gênero). Peterson se opõe à regulação governamental da nossa expressão sobre gênero – e eu concordo totalmente com ele. Ninguém tem o direito de nos compelir a usar linguagem politicamente correta por razão alguma – e especialmente não para proteger os ‘sentimentos’ das pessoas. Meus princípios fundamentais são o livre pensamento e a livre expressão. É totalitário exigir o controle da expressão por objetivos políticos. É claro que os pós-modernos atacam Peterson, porque ele ousa falar da natureza – como eu faço no meu próprio trabalho. Os brasileiros deveriam respeitar Peterson por isso – porque a natureza é um dos princípios supremos da cultura brasileira! A recusa a reconhecer o poder da natureza se tornou uma doença mental entre os intelectuais e os acadêmicos de hoje. A biologia existe – ela não pode ser apagada por fanáticos politicamente corretos. Nossa obrigação é buscar a verdade sobre o sexo e o gênero, não importa a direção para onde nossa busca nos leva.”

Em reação a esse humilhante passa-moleque, nosso crítico de província recorreu ao truque padrão do jornalismo brasileiro contemporâneo sempre que alguém ameaça desestabilizar o seu mundinho mental: tascou em Camille Paglia o adjetivo “controversa” (“a controversa ensaísta americana…”), no intuito mal disfarçado de estigmatizá-la e pôr sob suspeição as suas opiniões. “Controversa” era também a misteriosa garrafa de Coca-Cola que caiu do céu na frente de Xi, o simpático bosquímano do Kalahari do filme Os Deuses Devem Estar Loucos (1980), provocando uma revolução em sua pacata e isolada tribo. Intelectuais da estirpe de Peterson e Paglia são a garrafa de Coca-Cola na tribo dos jornalistas brasileiros contemporâneos.

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