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A História Cultural e o blog
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O que é História Cultural e pra quê este blog?

Existem muitas explicações para o surgimento da História como discurso verídico sobre o passado. Alguns reputam a cronistas da Antigüidade como Políbio, Heródoto ou Josefo, ou talvez ao evangelista Lucas.

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Jacques Le Goff aponta como momento fundador a demonstração por Lorenzo Valla, no século XVI, da falsidade do documento conhecido como “Doação de Constantino”, atribuído ao imperador do Século IV e usado como fonte de legitimação dos Estados Papais. Ao estudar este documento, Valla demonstrou que os termos e a linguagem empregados não poderiam remontar ao século IV, confirmando a falsificação e estabelecendo a crítica documental, que seria a base da História como saber autorizado.

Afinal, se o historiador trabalha com documentos, nada mais importante que saber se o documento que servirá de base para o estabelecimento de um passado é confirmado e autêntico: ou seja, foi escrito por quem se diz que foi e no tempo em que se diz que foi.

Mas antes mesmo que Valla pudesse estabelecer a crítica verificadora, houve primeiro o surgimento do documento como tal: uma Europa urbana e comercial tornou-se cada vez mais um lugar onde os documentos escritos precisavam ser guardados. Fosse nos scriptoria de mosteiros e bispados, fosse nos baús de comerciantes ou de nobres ciosos de sua linhagem os suas terras. Reis que precisavam estabelecer seus domínios e sua reputação como parte de famílias de campeões.

No século XIX, a quantidade de documentos armazenada já tinha atingido uma quantidade exorbitante – era o caso agora de desenvolver as metodologias de organização dos museus e arquivos que os teriam sob guarda, bem como dos especialistas que se dedicariam ao seu estudo.

Surgiam ali os primeiros historiadores, no sentido moderno do termo – coisa que não pode ser desligada do interesse em fundamentar e articular o discurso moderno do Estado Nação, que necessitava de fundamentos sólidos no passado – hoje sabemos, mais inventado do que real.

Mas foi o século XIX que criou os primeiros grandes eruditos da história, como Ranke, Coulanges, Michelet, entre outros.

No início do século XX a História já era uma disciplina mais do que estabelecida, tanto nas universidades, como em museus e em Sociedades e Institutos, além de movimentar uma parte considerável do mercado literário, e ter desdobramentos diversos, como a História da Arte, a História da Música, a História da Religião.

Como toda disciplina bem estabelecida, a História tinha adquirido um ranço particular, bem sedimentado, e difícil de ser revirado. Era uma sabedoria de eruditos, tinha apego ao documento oficial escrito, e se interessava principalmente por assuntos relativos aos “homens ilustres” – reis, generais, papas, grandes artistas, alguns heróis míticos fundadores de tradições, etc.

No século XX começou um movimento muito forte no sentido de destruir este belo castelo erigido a duras penas. Homens que transitavam dentro das Ciências Humanas, leitores de Marx, Durkheim ou Nietsche, capazes de perceber que a guerra de 1914-1919 havia destruído as velhas certezas sobre as quais a burguesia europeia tinha construído suas formas de ver o mundo. Seria preciso derrotar as concepções positivistas e cientificistas de História, para que a disciplina se tornasse relevante no século XX, e não se prendesse ao saber mofado dos eruditos oitocentistas.

Um dos mais ativos combatentes por esta Nova História foi Marc Bloch, cujo livro Apologia da História é um grande clássico para se pensar estas transformações.

Várias gerações de historiadores se sucederam, e reformularam completamente a maneira de pensar e de fazer a história. Houve um movimento em direção ao homem comum, ao cotidiano, às mentalidades, à demografia, à alimentação, às ideias religiosas e/ou políticas, aos movimentos culturais e artísticos. Nada mais daquela “história de tratados e batalhas”, como criticava Bloch.

A história passou a ser vista não mais apenas da ótica das classes dominantes e dos homens ilustres, mas da ótica dos derrotados, dos trabalhadores, dos homens simples, muitas vezes tendo de contornar, para isso, a absoluta ausência ou omissão dos documentos oficiais escritos.

O historiador teve de aprender a se debruçar sobre romances, obras de arte, partituras, vestígios arqueológicos, ou mesmo teve de inventar maneiras totalmente novas de ler os velhos documentos. Agora era preciso fazer o documento dizer muito mais do que ele intencionava, e, para usar novamente a análise de Le Goff, o historiador teve de aprender que todo o documento, só de ser produzido e arquivado, já revela uma intencionalidade que precisa ser contornada pelo historiador. Ou seja, é preciso extrair do documento histórico principalmente o que ele não diz.

Assim, a atividade do historiador voltou a ser deveras empolgante – hoje não há assunto que não interesse ao estudioso de história. Aprendemos que não existe um passado definido, pronto a ser descoberto nos documentos. Existe uma relação passado presente em permanente mudança.

Ou seja, ao olharmos o passado que pode ser entrevisto nas fontes históricas, estamos mesmo a olhar no espelho. A descobrir quem somos e para onde vamos.

E certamente, isso envolve aspectos muito além de saber quem é o rei ou o presidente, qual o PIB ou o valor da moeda, quem é o papa e qual a doutrina oficial. Há tantas abordagens possíveis quanto são possíveis os diferentes interesses humanos e os diferentes pontos de vista.

Ainda mais no Brasil, esse país tão particular. Uma nação moderna e arcaica, porque construída unicamente a partir dos domínios d’além-mar da monarquia portuguesa, tendo de trilhar os mais tortuosos caminhos para dar sentido a esta comunidade nacional que fala uma língua européia na terra de inúmeros povos ameríndios, e que se construiu sobre o sangue também de escravos trazidos da África.

Que implantou o cristianismo pela conversão e pelo batismo forçados, que estabeleceu um Estado moderno que fazia pouco sentido para a maioria dos trabalhadores rurais e da população analfabeta que estava espalhada num território extenso demais e pouco conectado por redes de transporte.

Se tentarmos entender como este país chegou a funcionar (é certo que há controvérsias quanto a isso), não poderemos usar aqui os conceitos desenvolvidos pela história europeia. Nosso caso é por demais diferenciado. Ou, para usar um termo que Tom Jobim gostava de repetir: “o Brasil não é para principiantes”.

Este blog aparece aqui na tentativa de caminhar por este universo por demais confuso em que se tornou a história como conhecimento possível. Servirá para aproximar o leitor desse mundo de discussões acadêmicas e de livros instigantes, para pensar junto sobre os pensadores que fizeram a história ser o que é. Mas, principalmente, para trazer questões sobre como se pode explicar historicamente muito do que somos, do que gostamos, das músicas e dos romances que nos tocam e fazem nossa identidade.

Ele serve para pensar o sentido de humanidade no século XXI, este momento mágico em que a maioria da população mundial não está mais diretamente ligada às lides necessárias para produzir o próprio alimento. Ou seja, estamos, a maioria de nós, humanos, no mesmo barco – inventando coisas inúteis para fazer e para dar sentido à nossa existência.

Isso é um dos significados mais fortes para o termo cultura. E é sobre como a cultura se articula numa relação entre passado e presente que estamos propondo pensar aqui neste espaço.

Quem for acompanhar este blog poderá esperar aqui comentários de livros clássicos, dicas culturais ligadas à história, comentários iconoclastas sobre nossos ídolos culturais, ideias esdrúxulas que podem dar resultados inesperados e nos levar a pensar de maneira nova. Poderá saber de novidades recém saídas das pesquisas acadêmicas, ou acompanhar de perto algumas coisas da nossa vida cultural – filmes, discos, shows, concertos, livros, exposições, tudo sob uma abordagem histórica.

E, ao contrário do que este primeiro texto pode ter deixado parecer, este blog não é um nicho para historiadores ou estudantes de história ou de pesquisadores da cultura. Ele parte do princípio que esses assuntos podem interessar a todos nós, o que significa que o leitor pode, e deve, se sentir à vontade para deixar aqui comentários, reclamar, perguntar e sugerir.

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