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“Cabelo ruim”
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Quando eu era criança e ouvia o termo “cabelo ruim” acreditava que era uma referência a um cabelo como o meu, cheio de redemoinhos e difícil de pentear. Bem, eu não nasci calvo.

De verdade, acho que só ouvi isso em filmes, de maneira casual.

Jamais imaginei até bem pouco tempo atrás que se tratava de algo ouvido cotidianamente pelas pessoas negras, usado para fazer pouco de sua aparência e sua identidade.

Perceber isso aqui no Sul do Brasil, onde a população negra tem menor densidade demográfica, é ainda mais difícil.

Recentemente, uma revista de Curitiba usou o termo “cabelo ruim” em uma página sobre turbantes. Sim, eu sei que turbantes não são exclusividade da cultura negra, mas isso só demonstra como os contextos do termo e do adereço fazem parte da questão. Foi uma combinação infeliz que gerou grande reação na internet, particularmente no Facebook.

A nota de esclarecimento posterior publicada pela revista demonstra inclusive que não houve ainda a plena compreensão do que aconteceu.

Para a revista, assim como para mim quando eu era criança, o termo “cabelo ruim” continua a ser sinônimo de cabelo rebelde, cheio de redemoinhos ou coisa assim.

Talvez fosse o caso de se ter consultado uma pessoa que realmente entendesse do assunto para escrever uma nota de retratação de fato e não uma tentativa de mostrar que foram mal compreendidos, uma forma sutil de se dizer que se está com a razão.

Se um grupo em particular está irritado com um fato, não é por capricho. Ninguém gosta de ficar irritado ou o faz por passatempo.

Não acredito que houve maldade da revista, mas sim a dificuldade natural que temos de observar nossos próprios privilégios.

Não à toa meu artigo sobre cabelos afro teve uma aceitação baixíssima, a ponto de eu mesmo achar que o que escrevi não fazia sentido nenhum e que estava ficando pirado.

De qualquer modo, não escrevo para agradar ninguém.

Todo o episódio – editorial de moda, reação das pessoas e nota de esclarecimento – trata-se de uma prova incontestável de que falta muito para chegarmos a entender as coisas que mais “pegam” para parcelas da sociedade menos privilegiadas do que aquelas parcelas em que nos situamos.

Porque todos somos desprivilegiados em algum aspecto, por mísero que seja, achamos justo não reconhecer nossos privilégios, por maiores que sejam. Talvez por isso.

Homens têm dificuldade de compreender o que pega para mulheres.

Heterossexuais têm dificuldade para compreender o que pega para homossexuais.

Jovens têm dificuldade de entender o que pega para os idosos.

Pessoas de classe média têm dificuldade de entender o que pega para pessoas pobres.

Pessoas magras têm dificuldade para entender o que pega para pessoas gordas.

Pessoas que andam não fazem ideia do que pega para pessoas que usam cadeiras de rodas.

Brancos têm dificuldade para compreender o que pega para negros, índios, asiáticos e demais.

Nós temos dificuldade para compreender até mesmo o que pega para nossos vizinhos.

Sempre temos privilégios em relação a um grupo ou a mais de um grupo.

Provavelmente, eu tenho dificuldade de entender o que pega para você, pessoa que me lê.

Se alguém diz que algo incomoda ou que algo está errado, cabe direcionar mais energia para a compreensão e menos para a tentativa de ter razão.

Privilégio é um tema cabeludo. Mais vale desembaraçar que tentar esconder ou evitar.

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