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Cada vez mais inconscientes
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O texto de abre desta coluna normalmente tem aproximadamente 3,5 mil caracteres. O tamanho, curto, é para dar espaço para algumas notas (três, em média) e valorizar as imagens, muito importante quando se está falando de um produto com forte apelo estético visual. Não nesta semana. Pois o assunto a ser tratado nos próximos parágrafos, apesar de ser um tanto quanto chato, merece destruir todo e qualquer apelo gráfico. Desculpe-me os leitores. Culpem Aleksei Maksimovich Peshkov, um russo que usou o codinome Máximo Gorki para escrever um dos mais belos textos sobre cinema. Quando ainda nem existia o que entendemos por cinema. Tinha que ser comunista.

“Ontem à noite estive no Reino das Sombras”, começa Gorki em sua tentativa em descrever o que se passou numa sala escura em 1896. Era um “mundo sem cores, sem som”. O escritor russo se deparava, pela primeira vez, com o Cinematógrafo Lumière que exibia as tais fotografias animadas. “Tudo aqui – a terra, a água, e o ar, as árvores, as pessoas –, tudo é feito de um cinza monótono”. O texto, publicado em um jornal russo, começa descritivo, mostrando ao leitor como estranho era estar em frente a uma tela em que imagens monocromáticas se sobrepunham quase que aleatoriamente. O que Gorki assistia eram os curtas produzidos pelos irmãos Lumière para demonstrar uma invenção tecnológica, não artística. Eram clipes de pequena duração com cenas do cotidiano. Trens em movimento, pessoas andando pelas ruas ou protótipos de gagues visuais, como o menino que pisa na mangueira para interromper a água de um jardineiro em plena labuta. “Examinando-a, vemos veículos, edifícios, pessoas, todos imóveis, e prevemos que esse espetáculo não trará nada de novo: imagens de Paris, quem não já não as viu inúmeras vezes?”

Mais alguns parágrafos e Gorki tem a grande sacada: consegue identificar que não se estava apenas falando de imagens em movimento. Existia algo ali algo que não era tão objetivo. Não se estava vendo um simulacro da vida naquela sala do Café de Aumont. Era uma nova forma de experiência. Talvez até arte, como muitos anos depois Serguei Eisenstein e André Bazin tão bem definiram. “Nasce uma vida diante de nós, uma vida privada de som e do espectro das cores – uma vida cinzenta e silenciosa –, uma vida descorada, uma vida com desconto”. Gorki nota que a experiência dele naquela sala é algo inédita, uma apresentação “grotesca”, como classifica, um “cortejo de sombras”. “Acabamos incomodados e deprimidos com essa vida silenciosa e cinzenta”. No resumo: “Esquecemo-nos de onde estamos. Ideias estranhas invadem nossos espíritos; ficamos cada vez menos conscientes. Não consigo ver ainda qual a importância científica da descoberta dos irmãos Lumière, mas sei que essa importância existe e que será possível usar o Cinematógrafo com fins que são os da ciência: a melhoria da vida do homem e a ampliação do seu espírito”.

Um russo vê um invento francês e tem a certeza que aquilo ali é arte. Mesmo num mundo anterior a Griffiths, Chaplins e Langs. Que falta faz um gênio desses. Completamos 40 anos da criação dos videogames e nunca li nada que chegasse perto. Talvez por que os games não sejam uma forma de expressão artística?

Um crítico americano de cinema vaticinou: videogames não são arte. “E nunca serão”, disse Roger Ebert. A afirmação tem seu fundo de verdade. Assim como a câmera de cinema provavelmente nunca será arte também, mas sim apenas plataforma tecnológica. O erro é concluir que jogos eletrônicos também não são arte, como justifica Ebert em um polêmico artigo publicado em 2010 no jornal Chicago Sun-Times.

Segundo Ebert, arte seria a expressão de um artista. Video­­games são um produto coletivo. Mais: videogames têm regras e objetivos. Características não presentes em obras de arte, considera. Bobagem, certo? Mais tarde ele mesmo reconsidera que exagerou e confessa que nunca colocou a mão num jogo eletrônico. Bom, imagino que ele anda escrevendo muitas críticas sem nem ver o filme, analisando o retrospecto.

O ponto da coluna desta semana: jogos eletrônicos po­­dem ser arte. O problema não está nos jogos, mas sim na crítica. Ebert não é um Gorki. Na verdade, ainda não vimos um Gorki escrevendo sobre games. Mas, leitores, permitam-me supor que o russo tivesse tido contato com, digamos, Tetris. “Ontem à noite estive no Reino dos Blo­­cos”, começaria. “Tudo aqui – quadrados, colunas e as mais diversas formas poligonais-, tudo é feito de uma enorme paleta de cor”. A experiência, que também se passa numa sala, é tentar organizar o caótico movimento das peças abstratas. A recompensa não é, como muitos poderiam supor, ter uma maior pontuação. É tentar dar sentido às formas. Juntá-las conforme a cor. Ser rápido o suficiente para achar os espaços vazios e, quase que inconscientemente, zerar tudo para recomeçar uma tarefa quase infinita. Como num transe.

Gorki reconheceria logo de cara que Tetris é um produto russo, com base no construtivismo. Ali está muito da cultura soviética. Da simplicidade das formas, da ordenação das coisas. Sem ostentação estética. O jogo de blocos sintetiza e exprime tanto o período comunista russo como talvez nem Malevich tenha conseguido. Um cortejo das formas.

Reprodução

Já entrando no ambiente da interpretação, Tetris é uma espécie de desfragmentador de cérebros, que tentam sempre categorizar tudo. E é mais que isso. O jogador tem uma imersão muito maior que em outros meios. É preciso, como já dito, entrar em transe profundo, abdicar da racionalidade, deixar as cores atingirem diretamente o córtex para que os comandos no joystick sejam os mais rápidos possíveis. Chega a ser primitivo. O jogador derruba diversas áreas da razão para permanecer por mais tempo apenas respondendo a estímulos visuais, sonoros e mecânicos. “Esquecemo-nos de onde estamos. Ideias estranhas invadem nossos espíritos; ficamos cada vez menos conscientes”, lembram?

Não reconhecer que jogos eletrônicos podem ser considerados arte só tem duas respostas: ignorância, como o caso de Ebert, ou preconceito. O maior problema desta nova narrativa não é tanto de conceito, mas sim de espelho. Explico: que a arte moderna tem outra forma parece notório, só não temos uma crítica preparada para mostrar isso para todos. Disse o âncora que já fomos mais inteligentes. Talvez. Talvez.

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