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A conciliação possível entre cristianismo e evolução
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Mike Rozulek

Amanhã faz exatamente 150 anos que A origem das espécies, de Charles Darwin, foi lançado. Esse livro afetou a humanidade como poucas outras obras ao longo da história, e para muitos se tornou sinônimo da incompatibilidade entre ciência e religião. Felizmente, de uns tempos para cá alguns cientistas competentes em seus campos, e que são pessoas religiosas, passaram a construir uma meio-termo, defendendo Darwin dos ataques de fundamentalistas religiosos e defendendo a religião dos ataques de fundamentalistas científicos. Karl Giberson, presidente da Fundação BioLogos, é um desses autores. Cristão evangélico, Ph.D. em Física, professor universitário, Giberson lançou Saving Darwin (HarperOne, 248 p. Meu exemplar foi comprado na Amazon) e veremos que não foi sem razão que o Washington Post considerou a obra como um dos melhores livros de 2008. É com a resenha de Saving Darwin que o Tubo de Ensaio abre a semana dedicada a Charles Darwin e aos 150 anos de seu livro.

Como não podia deixar de ser, Darwin é o personagem principal do capítulo inicial do livro. O Darwin de verdade, e não as lendas criadas em torno dele, seja a história piedosa de uma reconversão no leito de morte e rejeição de sua teoria, seja a do sujeito que tinha como objetivo de vida “matar Deus”. O verdadeiro Charles Darwin, a bordo do Beagle, viu que o paradigma que explicava a vida na Terra tinha suas falhas (curiosamente, esse paradigma, o de William Paley, era muito parecido com o Design Inteligente que temos hoje), e trabalhou em cima disso. O resultado todos nós sabemos, mas o que escapa de muita gente é que a teoria da evolução, na verdade, acomoda Deus melhor do que a opção existente até então.

Divulgação
“Saving Darwin” é um dos livros que promove a compatibilidade entre fé e evolucionismo.

Darwin se incomodava ao ver o que identificava como sinais de crueldade na natureza: gatos que torturavam ratos antes de comê-los, ou vespas cujas larvas eram programadas para se alimentar dos órgãos internos de seu hospedeiro na ordem exata para fazê-lo viver o máximo possível enquanto era devorado. Ele também identificava algumas coisas fora do lugar: na América do Sul, Darwin viu emas e se perguntava qual era o ponto de uma ave que não voava. Se Deus fez tudo isso exatamente desse jeito, além de cruel, Ele seria um mau designer. Agora, se gatos torturadores, vespas e emas eram produto da seleção natural e não da vontade direta divina, Deus podia permanecer como o autor das leis naturais, que de vez em quando resultam em algo sublime, e de vez em quando levam a “falhas de design”.

“Ah, mas Darwin não virou agnóstico?” Sim, virou. Mas Giberson mostra que o agnosticismo do naturalista não era consequência nem causa de sua teoria da evolução. Para começar, Darwin tinha sérios problemas com o conceito de inferno – ainda mais porque seu pai morreu sem acreditar em Deus. Admitir que um familiar esteja no castigo eterno é duro para qualquer um, e com Darwin não foi diferente. A reação é bem humana: diante de uma crença incômoda, é mais fácil mudar de crença que mudar de vida. A gota d’água foi a morte de sua filha Annie, aos 11 anos. Era inaceitável para Darwin que o Deus bíblico, que não deixava um pardal cair do céu sem Sua permissão, deixasse a menina morrer. E a fé do naturalista se foi junto com Annie.

No capítulo seguinte, vemos a repercussão das ideias de Darwin nos meios religiosos. Uma repercussão quase nula, aliás: as pessoas mais religiosas da virada do século 19 para o século 20 não estavam muito alarmadas com A origem das espécies. O perigo vinha da Vida de Jesus escrita por David Strauss em 1835. Milagres, a veracidade da Bíblia e a própria existência de Jesus foram questionados, numa prévia do que fariam no século 20 em nome do “Jesus histórico”. Foi para reagir a Strauss que protestantes norte-americanos lançaram o movimento fundamentalista, assim chamado por causa de The fundamentals, uma coleção abrangente de coisas que os cristãos deviam aceitar para serem bons fiéis. Darwin passou por esse teste. Havia poucas críticas ao evolucionismo em The fundamentals, mas nem sinal de criacionismo de Terra jovem – que em 1909 era defendido apenas por uma pequena seita, os adventistas do sétimo dia, e isso por causa não da Bíblia propriamente dita, mas de visões da fundadora do grupo.

Allison Stillwell
Parece incrível, mas é esse tipo de vespa que está no centro de um debate sobre Deus e design na natureza.

No livro, Giberson descreve como a oposição a Darwin ganhou corpo, começando com o famoso processo Scopes (ou “processo do macaco”), que foi narrado por um jornalista narcisista e preconceituoso, e virou peça de teatro e filme. Vemos todas as tentativas legais de bloquear o ensino da evolução e, depois, garantir tempo igual em sala de aula ao criacionismo ou ao Design Inteligente. Descobrimos como o criacionismo da Terra jovem, que estava confinado aos círculos adventistas no início do século 20, se tornou a crença padrão dos fundamentalistas atuais a partir da década de 60, graças a Henry Morris e John Whitcomb: eles deram roupagem mais científica a uma quase desconhecida obra antievolução dos anos 20 e o resultado, The Genesis flood, disparou uma onda de literalismo bíblico nos Estados Unidos. É curioso notar que a contestação a Darwin não usou a Biologia, e sim a Geologia. Outra observação interessante de Giberson: pelos próprios critérios, Morris e Whitcomb falharam, pois pretendiam que sua ciência da criação fosse levada a sério pela comunidade científica, o que não aconteceu. Mesmo assim, o criacionismo decolou. O Design Inteligente, que Giberson classifica como uma espécie de reciclagem do criacionismo, ganhou um capítulo em que o autor comenta: como cristão, ele até gostaria que o DI fosse verdade – quem não gostaria? Um Deus designer, que cria maravilhas biológicas… mas logo a seguir Giberson expõe os buracos científicos e teológicos do DI, com direito ao retorno do “Deus cruel”, que desenhou o engenhoso e aterrorizante sistema de alimentação das larvas das vespas icneumônides…

Para mim, existem dois capítulos que constituem pontos-chave do livro. Um deles é o terceiro. Nele vejo uma explicação para grande parte da rejeição atual ao evolucionismo ao descrever os “dark companions” de Darwin, que todo criacionista adora lembrar. “A eugenia e o nazismo se basearam em Darwin”, dizem. Giberson enumera os expoentes daquilo que se convencionou chamar de “darwinismo social”: desde Francis Galton, primo de Darwin, que sugeriu às famílias “boas” que tivessem mais filhos, até os nazistas, inspirados por Ernst Haeckel (que era contemporâneo de Darwin, e não de Hitler), com a Solução Final e a eliminação dos inaptos. No meio disso, esterilizações forçadas nos Estados Unidos e outras crueldades. Mas, enquanto a eugenia já existia muito antes de Darwin, Giberson aponta outro aspecto fundamental: a teoria da evolução é descritiva, não propositiva; ela diz o que acontece na natureza, e não o que deveria acontecer – e muito menos o que o homem ou a sociedade deveriam fazer. Em A origem das espécies não há juízo de valor, ao contrário do “darwinismo social”, que pode ser social, mas não é darwinismo. O problema é que, depois de tanta propaganda criacionista associando Darwin a Hitler, explicar que focinho de porco não é tomada ficou quase impossível. E aí, sejamos honestos, quem quer aderir a uma teoria que serviu de base para tanta atrocidade?

Reprodução
Até Os Simpsons já fizeram sátira ao criacionismo.

O outro capítulo que compõe a essência do livro é o sétimo. Nele, Giberson descreve como a disputa sobre a teoria da evolução já deixou, há muito tempo, de ser uma controvérsia científica, na qual o importante é descobrir a verdade sobre a natureza, para se tornar uma guerra cultural, na qual a realidade pouco importa e o objetivo é apenas desmoralizar ou esmagar o adversário. Isso aconteceu justamente quando começaram a colocar Deus no meio da discussão: no cenário evolucionista, há espaço para Ele? E, se existe, qual é esse papel? Não ajudou muito o fato de a associação norte-americana de professores de Biologia ter definido evolução como um processo “impessoal, imprevisível e não-supervisionado”, extrapolando um pouco o que os cientistas sabem sobre o assunto. Como é possível afirmar taxativamente que não existe um propósito ou um direcionamento no processo? O resultado é que o evolucionismo se tornou praticamente uma religião em si, que cresce à medida que seus “sacerdotes” massacram as outras religiões. Para eles, a evolução explica tudo (leia-se “tudo mesmo”): a moralidade, o altruísmo, até mesmo a religiosidade, o estupro e o infanticídio. Para um outro grupo, Darwin causou a Primeira Guerra Mundial, a depressão da década de 30, a eugenia nazista. Dawkins e companhia dizem que Darwin tornou Deus inútil; criacionistas alegam que Darwin trabalhava para o diabo. Não surpreende que o combate seja sangrento, e que o cerne da questão (afinal, Darwin tinha razão em sua teoria biológica?) tenha ficado de lado. É algo que qualquer blogueiro experimenta quando seus leitores passam a se agredir na caixa de comentários por todo tipo de assunto, menos o conteúdo que o blogueiro tinha escrito.

Após uma pequena introdução sobre como a evolução levou Karl Popper a abrir uma exceção na sua descrição de “teoria científica” como algo necessariamente falseável, Giberson dedica o capítulo 8 a uma explicação altamente convincente das cinco grandes evidências a favor de Darwin: o registro fóssil (Giberson não falou de Nicolau Steno, mas permitam-me recordar a importância desse bem-aventurado católico nesse ponto), a Biogeografia, a Anatomia comparada, as semelhanças no desenvolvimento das espécies, e Bioquímica/Fisiologia comparadas. Até aí, o leitor se pergunta: a leitura está muito boa, mas e a promessa do subtítulo? Até agora, o autor não explicou “como ser cristão e acreditar na evolução”. Isso fica para a conclusão do livro, Pilgrim’s Progress (o nome é inspirado na obra religiosa homônima do século 17, de John Bunyan). Deus, diz Giberson, é o autor da natureza, mas não cuida dos detalhes. Gatos cruéis e a morte terrível dos hospedeiros de larvas não levam o dedo divino. E, talvez até mais importante, o homem não é um “acidente” da evolução. Há propósito e significado no processo, que Giberson descreve como “expressão da criatividade divina, embora em um modo que não possa ser capturado pela visão científica do mundo”. Que apenas dois tipos de objetos físicos (quarks e léptons) e quatro forças (gravitacional, eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca) tenham dado origem a tudo é um testemunho dessa criatividade.

É uma pena que Saving Darwin ainda não tenha uma tradução para o português. A guerra cultural em torno do evolucionismo está chegando ao Brasil, mobilizando defensores e detratores da teoria. Eu particularmente discordo de algumas elocubrações teológicas de Giberson no livro (o que provavelmente se deve ao fato de eu ser católico e ele, protestante), mas o valor dessa obra como construtora de uma ponte sólida entre fé cristã e adesão ao evolucionismo é inegável.

Amanhã no Tubo de Ensaio: confira uma entrevista exclusiva com Karl Giberson, o autor de Saving Darwin.

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