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Lewis imaginou o planeta Marte com muito mais cor e vida que as imagens recentes da Nasa. (Foto: NASA/JPL-Caltech/MSSS)
Lewis imaginou o planeta Marte com muito mais cor e vida que as imagens recentes da Nasa. (Foto: NASA/JPL-Caltech/MSSS)| Foto:

O britânico C.S. Lewis é mais conhecido pelas Crônicas de Nárnia ou por seus livros mais apologéticos, como Os quatro amores e A abolição do homem. Mas ele também se aventurou na ficção científica, ramo de que gosto muito, e já fazia um tempo que eu estava querendo me dedicar à sua Trilogia Cósmica: Além do planeta silencioso, Perelandra e Uma força medonha. Já sabia que ali havia muito conteúdo interessante para uma reflexão sobre ciência e fé, e a leitura do primeiro livro só me reforçou essa impressão.

Para resumir bem resumido, em Além do planeta silencioso o filólogo Elwin Ransom (inspirado em J.R.R. Tolkien, amigo de Lewis) é sequestrado por um ex-colega de escola e seu parceiro cientista, e levado para Marte, ou Malacandra. Lá, depois de escapar de seus captores, Ransom descobre que o planeta é habitado por três espécies diferentes de seres racionais: os sorns, a “elite intelectual”; os pfifltriggi, engenheiros, construtores e artesãos; e os hrossa, fazendeiros, pescadores, construtores de barcos e os melhores poetas do planeta, a ponto de seu idioma ser a “língua comum” de Malacandra. Mais adiante, Ransom será levado à presença de Oyarsa, o governante do planeta, mas que não pertence a nenhuma das três espécies: ele é um ser praticamente incorpóreo, um eldil, como outros que circulam pelo planeta.

O personagem que mais me interessa destacar aqui é Weston, o físico (um dos melhores do mundo, diz Devine, o ex-colega de Ransom). Ele é a própria personificação do cientificismo, e ao longo de todo o livro é apresentado por Lewis como uma figura absolutamente detestável. Weston despreza “os clássicos, história e essas bobagens” (p. 31); para ele, só as hard sciences têm valor. Seu discurso diante de Oyarsa, no ponto culminante do livro (capítulo 20), é uma defesa apaixonada de sua fé cega no poder da ciência, do might makes right, da ciência sem ética, de um “direito ao extermínio e à destruição” em nome de um progresso que parece inevitável. Já no início do livro, dentro da espaçonave, rumo a Malacandra, ele diz a Ransom que “os fins justificam os meios” (p. 30), e, já que eles estão “fazendo o que nunca foi feito na história do homem”, o filólogo não pode “ser tão mesquinho a ponto de pensar que os direitos ou a vida de um indivíduo ou de um milhão de indivíduos tenham a menor importância em comparação com isso”.

“Além do planeta silencioso” compõe a Trilogia Cósmica junto com “Perelandra” e “Uma força medonha”. (Foto: Divulgação)

O vilão do livro, ainda por cima, tem um pé na eugenia. O leitor verá logo no início do livro que Ransom só acaba sequestrado por Devine e Weston porque o filólogo frustra uma tentativa da dupla de enfiar um jovem, Harry, na espaçonave. O físico não consegue enxergar dignidade humana no rapaz, “incapaz de servir à humanidade e infelizmente muito propenso a propagar a imbecilidade. Era o tipo de menino que, numa comunidade civilizada, seria automaticamente entregue a um laboratório do Estado para uso em experimento” (p.19). Diante de Oyarsa, Weston defenderá o “direito do superior sobre o inferior” (p.184), contrapondo a espécie humana àquelas de Malacandra. Isso nos leva ao último capítulo, depois de encerrada a narrativa, em que o autor revela que Weston é um nome fictício, e diz que alguns leitores o identificariam facilmente. Ao mencionar “a rápida marcha de acontecimentos que deixariam deixaria o livro antiquado antes da publicação”, e considerando que Além do planeta silencioso foi publicado em 1938, é de se perguntar se Weston também não seria uma referência às ideologias totalitárias que estavam avançando sobre a Europa naquela época, embora de uma forma secundária, já que eu vejo nele, em primeiro lugar, a mentalidade cientificista. Se bem que, pensando no materialismo ateu comunista, crente no progresso certo rumo à sociedade sem classes, e no “darwinismo social” nazista (uso a expressão na falta de outra melhor), no fim as duas coisas se confundem…

Independentemente disso, é sintomático que Weston e suas ideias sejam de tamanha perversidade que Oyarsa lhe dirige palavras bem duras. Referindo-se a Devine, que só está interessado em pilhar as riquezas de Malacandra, Oyarsa diz que ele é “quebrado”, “não é mais que um animal falante” (p. 189). Mas Weston não: ele é “torto”, e “um hnau [criatura racional] torto pode ser mais maléfico que um quebrado”. É ao ouvir Weston que Oyarsa percebe a extensão da corrupção humana. Cada planeta tem, ou tinha, seu Oyarsa. Mas o da Terra se rebelou e, após uma batalha, foi confinado à atmosfera terrestre. Ele se tornou o Torto, com maiúscula (a essa altura, o leitor já deve saber de quem estou falando, até porque Lewis nunca foi muito sutil com analogias e referências), e desde então não havia mais notícias da Terra; ela se tornara o “planeta silencioso”, ou Thulcandra.

E como os homens foram corrompidos? Oyarsa explica (p. 189): “Existem leis que todos os hnau conhecem, da compaixão, da lisura, da vergonha e afins; e lei do amor ao semelhante. Ele [o Torto] ensinou-lhes a desrespeitar todas elas, à exceção de uma, que não é das mais importantes. Essa lei ele entortou até torná-la absurda e a instalou, torta desse jeito, para ser um pequeno Oyarsa cego no cérebro de vocês. E agora vocês não podem fazer outra coisa além de obedecer a ela”. Pensei nessa “lei entortada” como o primado da consciência e, ao ler sobre o “pequeno Oyarsa cego”, foi impossível não lembrar das palavras do tentador no Gênesis, o “sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. Em um texto curto sobre a consciência, Joseph Ratzinger usou a expressão “deificação da subjetividade” para explicar o que ela não era, mas como muita gente a via. Aqui reside a malícia toda: Weston está indubitavelmente seguindo sua consciência; uma consciência bastante deformada, mas ainda assim é sua consciência, e é isso que o torna tão perigoso.

Correção/atualização: o Paulo Cruz me alerta que a tradução brasileira desse trecho é no mínimo confusa, para não dizer errada. O original inglês diz “He has taught you to break all of them except this one, which is not one of the greatest laws” (grifo meu), e a tradução portuguesa diz “Ele ensinou-te a destruí-las a todas com excepção dessa que tu defendes e que até nem é das mais importantes” (grifo meu também). Ou seja, Oyarsa está se referindo especificamente ao “amor ao semelhante” como a lei que foi “entortada”. Diz-me o Paulo: “O ‘amor à humanidade’, no ser humano, apesar de ser genuíno, está deturpado a ponto de surgirem tipos como Weston, que querem salvar a humanidade sacrificando indivíduos”. E, se voltarmos à referência do “pequeno Oyarsa cego”, veremos que em Malacandra só Oyarsa pode eliminar deliberadamente um hnau (as outras opções são a morte natural e alguma infelicidade como ser devorado por um hnakra). Ora, se cada pessoa tem um “pequeno Oyarsa cego” no seu cérebro, cada um também se julga senhor da vida dos demais. É assim que aparecem, por exemplo, os grandes genocidas que só querem construir “um mundo melhor” e aqueles que os apoiam, como um Eric Hobsbawm, para quem a morte de milhões de soviéticos teria valido a pena se o resultado fosse a sociedade comunista (olha aí o totalitarismo aparecendo de novo).

O cientificismo é o grande tema de Além do planeta silencioso, mas, tendo dito o que queria dizer sobre ele, gostaria de fazer uma pequena digressão. Não ficou totalmente claro para mim se houve algum tipo de Queda ou Pecado Original em Malacandra. Se levarmos em conta que os hnau de Malacandra vivem em perfeita harmonia entre si e conseguem se comunicar facilmente com os eldila, então parece que não houve corrupção. Mas Oyarsa diz a Weston que o Torto tentou os malacandrianos (p.190-191), e que aqueles dominados por ideias tortas foram “curados” ou “descorporificados” por Oyarsa; ele acrescenta que, ao descerem para as terras baixas, os malacandrianos abandonaram “o medo, o assassinato e a rebelião”. Então é possível que tivesse havido desobedientes, mas agora não mais. É bem interessante que, nesse cenário de pureza (original ou readquirida), mesmo assim há morte e destruição (as criaturas não racionais atacam os hnau, que também as perseguem; a caça a um monstro marinho tem papel relevante na trama), e até mesmo uma extinção em massa, mesmo sem a corrupção do pecado. Digo isso porque sei que há muitos adversários da teoria da evolução para quem ela é falsa porque, defendem, não poderia ter havido esse tipo de coisa antes da desobediência dos primeiros homens.

Agora é ir pra Perelandra, já que fiz essa resenha logo que terminei o primeiro livro, e por isso não sei o que será feito dos personagens mais adiante.

(Obs: As indicações se referem à edição da WMF Martins Fontes; não sei se a Thomas Nelson, que vem relançando boa parte da obra de Lewis, pretende incluir a Trilogia Cósmica na coleção).

(Obs 2: vocês certamente gostarão de ler um outro texto sobre Além do planeta silencioso, escrito por Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo. É mais longo, faz uma recapitulação das circunstâncias que levaram à publicação do livro, é mais analítico, mas também tem mais spoilers, hehe).

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Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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