• Carregando...
Ingleses dão um golpe no “Deus das lacunas”
| Foto:

O Estadão publicou ontem uma matéria mostrando que cientistas ingleses conseguiram superar um dos grandes obstáculos ao entendimento da origem da vida na Terra: finalmente conseguiram criar nucleotídeos de RNA em laboratório. Por algum motivo o jornal não colocou a matéria na versão online, então confiram como o assunto foi noticiado no New York Times (em português, via UOL).

Explicando um pouco: o RNA, ou ácido ribonucleico, é mais simples que o DNA. Ele é formado por uma “fita” que contém fosfato e açúcar ribose, além das bases nitrogenadas adenina, guanina, citosina e uracila (essa última não existe no DNA; é substituída pela timina). Vejam aí embaixo:

National Human Genome Research Institute
À esquerda, molécula de RNA. À direita, molécula de DNA.

Os cientistas estavam empacando porque, até agora, tentavam criar ribose, fosfato e base nitrogenada separadamente, para depois juntar os três elementos, o que nunca funcionava. A novidade da equipe inglesa responsável pela descoberta foi criar uma molécula que já trazia, juntas, base nitrogenada e ribose. O fosfato, depois, completaria o nucleotídeo.

A reportagem no site da Nature está um pouco mais esclarecedora (para quem quiser o artigo científico propriamente dito, ele está aqui), especialmente porque conta que os pesquisadores ainda não conseguiram criar todos os quatro nucleotídeos possíveis. Ainda faltam os que levam adenina e guanina (um dos cientistas anuncia que é o próximo objetivo do grupo). A reportagem da Nature ainda dá espaço para um opositor da teoria, que alega diferença entre as condições de laboratório e as condições da Terra primitiva.

Meu amigo Wagner, que recomendou o texto do Estadão, acrescenta que o estudo dos ingleses provavelmente será trombeteado como uma “prova da não-existência de Deus”. John Sutherland, um dos co-autores da pesquisa, já deu o pontapé inicial ao dizer “para mim, significa que nós estamos aqui por causa da química, e nada mais” (a frase está no texto do Estadão). Mas, na verdade, a possibilidade de criar RNA em laboratório só será um golpe no chamado “Deus das lacunas”, aquele que é uma muleta para explicar tudo o que a ciência não consegue esclarecer. “A ciência não consegue produzir vida em laboratório? Isso prova que houve intervenção divina”, diz o adepto do Deus das lacunas – claro, os cientistas de Manchester ainda não “produziram vida”, mas superaram uma dificuldade que os impedia de encontrar uma explicação puramente natural para o surgimento da vida no planeta.

Reprodução
“A criação dos peixes e das aves”, de Gustave Doré; OK, não foi desse jeito, mas hoje sabe-se que a vida surgiu nos oceanos.

Mas a criação da vida precisa necessariamente de uma intervenção divina? Em seu livro When science meets religion, Ian Barbour traz algumas citações interessantes. Depois de lembrar que, desde Santo Tomás de Aquino, muitos teólogos católicos trabalham com a a noção de Deus como “causa primeira”, que trabalha por meio de causas secundárias (que a ciência pode descobrir), Barbour cita o jesuíta William Stoeger: Podemos conceber uma ação criativa continuada de Deus como ocorrendo por meio de um desenvolvimento natural das potencialidades da natureza, e o contínuo surgimento de novidades, de auto-organização, da vida, da mente e do espírito. (o grifo é meu)

Já o físico protestante Howard van Till, também mencionado por Barbour, cita dois padres da Igreja, Basílio e Agostinho, para quem Deus havia criado o mundo sem “buracos” que devessem ser preenchidos com intervenções divinas. Para Van Till, Deus providenciou as possibilidades para que as estruturas da natureza pudessem se desenvolver por si mesmas. Nada disso, no entanto, significaria que o mundo está fechado à ação divina, diz Van Till. O Deus judaico-cristão não é o Deus das lacunas, mas uma divindade mais pessoal, que interage com suas criaturas de outras formas. Ninguém está negando que Deus seja necessário à existência da vida, ao “sustentar” essa existência, no sentido de que sem Deus tudo deixaria de existir.

Mais adiante, Barbour cita o trabalho de Arthur Peacocke (que se define como panenteísta), para quem Deus deu à matéria do universo a potencialidade criativa que ela manifestará quando houver as condições adequadas. A conclusão que podemos tirar deste breve resumo é que cientistas/teólogos de três grupos religiosos diferentes (católico, protestante e não-cristão) descartam a necessidade de uma intervenção direta de Deus na criação da vida.

Então, para o debate: será que o fato de a vida poder surgir apenas por processos físicos e químicos torna Deus “menos Deus”, ou nega a sua existência? Que impacto o experimento de Sutherland e seus colegas pode ter nas visões religiosas da criação?

——

Tubo de Ensaio no Twitter

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]