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Entre tapas e beijos
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Ni Hao,

Meu casamento com a Liu já completou um ano. Fiquei pensando como, diante de tantas diferenças culturais, conseguimos nos aguentar e nos respeitar tanto.

E ainda metemos o marido dela no meio: ele leva as crianças para escola todos os dias de manhã. Claro que o dinheiro permeia nossa relação, mas gosto de acreditar que, acima de tudo, nós nos aguentamos porque, como dois seres humanos, gostamos uma da outra.

Mas, como todo bom casal, a convivência diária nos permite libertar nossas idiossincrasias, carências e manias que precisam ser aceitas pelo parceiro para não melar a relação.

Por exemplo, a Liu vivia me dizendo que cozinhava mal, que não sabia fazer nada, que o marido que cozinhava e coisa e tal. Hoje, embora já seja capaz de fazer sozinha um delicioso arrozinho com feijão, o discurso continua o mesmo. Ela deixa o jantar pronto e vai embora para casa. No dia seguinte ela corre para geladeira para ver se sobrou restinho de comida e, se encontra um grão de arroz na panela, ela manda logo: “Ninguém gostou! Eu não sei cozinhar!”

Liu, você está mais para mãe judia do que para empregada chinesa!

No entanto, o que a Liu não tem oportunidade de ver é que nossa casa virou a cantina da escola das crianças. Todos os dias depois das aulas, os amiguinhos da Mari, Marcos e Dudu aparecem aqui em casa para comer. A intimidade é tanta que eles mal me cumprimentam, vão direto para cozinha, abrem as panelas e se servem livremente. Estou até pensando em comprar uma balança e lançar um negócio de comida a quilo.

Chris Dumont

Ainda falando sobre comida, Liu sempre teve a mania de dizer que “cozinhava muito limpo”. A tradução disso é que ela não acumulava sujeira na cozinha enquanto fazia o almoço. Naquele tempo, a frase terminava por aí. Agora, que nossa intimidade aumentou (e muito!), ela complementa: “Você tem que aprender a cozinhar limpo!” Eu? É, pode ser!

Aliás, ela está ficando obcecada por limpeza. Todos os dias fala que as minhas plantas artificiais soltam muito fiapo, que as plantas verdadeiras soltam muitas folhas, que os tapetes juntam muito sujeira… Ok, Liu, mas essas coisas deixam nossa casa mais bonita. “Bonito é limpeza”, diz ela. É, pode ser.

Mas quem mais suja nossa casa de verdade é esta coisinha aí embaixo.

Chris Dumont

A gata branca, ainda sem nome, solta muuuuuito pelo. Um dia a Liu me disse que uma amiga foi diagnosticada com câncer de pulmão. Ao abrirem seu peito para fazer uma biopsia, encontraram uma bola de pelo de gato! Isso porque sua gatinha dormia na cama e ela aspirava os pelinhos todas as noites.

A China tem tantos anos de cultura e tradição, que a gente sempre acha que pode ser que seja verdade. Ou não. Por exemplo, a insônia da Liu, relatada no primeiro post, persiste. O novo médico passou algumas ervas para serem fervidas e tomadas todos os dias, como prega a medicina tradicional chinesa. Liu me disse que ia precisar sair um pouquinho mais cedo nas sextas-feiras para pegar as ervas no hospital. Mas, na segunda semana, uma Liu sonada e de saco cheio me disse: “Desisti! Muito trabalho e não está adiantando nada!”

Algumas coisas aqui em casa deixam a Liu inconformada. Por que a temperatura do ar condicionado tem ficar em 19 graus? Na casa dela, quando precisa, ela liga em 26. Liu, isto não é ar condicionado é aquecedor!

Mas isso não é uma peculiaridade da Liu, e sim de todos os chineses. Luiz diz que o sistema de refrigeração interno deles é diferente do nosso. Volta e meia ele tem que usar da prerrogativa de chefe para mandar baixarem a temperatura do ar condicionado no trabalho. E, enquanto ele sua em bicas, deixando marca no sovaco da camisa, os coleguinhas vestem seus casacos e tomam água quente.

A Liu acha que eu sou fraca. Outro dia, me irritei e desafiei- a a bater uma queda de braço. Para meu azar, perdi e dei a ela a certeza que faltava para me dizer: “Você é fraca porque come pouco arroz!”.

Arroz, para ela, é a melhor comida do mundo! Provavelmente, essa ideia deve ter sido incutida na cabeça dos chineses diante da escassez de alimentos no país, há algumas décadas.

O fato é que, outro dia, ela jogou baixo comigo. Cheguei da yoga com uma camisetinha decotada e ela, com seu ar professoral de sempre, sacudiu a pelezinha do meu tríceps e disse: “Sua pele está muito mole porque você não come arroz!”

É, pode ser. Mas tenho certeza de que, se eu seguir as recomendações da Liu, além de flácida ainda vou ficar obesa!

Para finalizar, outro dia a Liu comentou que consumíamos muito leite e que leite é muito caro (a Liu também cuida das nossas finanças). Eu disse que no Brasil há muitas terras para pastagem, que o leite é bem mais barato do que na China e que, por isso, todos tomamos muito leite. Ela fez “oooooou”!

No dia seguinte, estava assistindo à TV que noticiou a goleada da seleção brasileira sobre a chinesa: 8 x 0! A Liu acabou de ouvir a notícia, me olhou com o mesmo ar professoral de sempre e mandou: “Brasileiro é muito forte porque toma muito leite!”

É, pode ser.

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