
Ouça este conteúdo
O governo brasileiro anunciou que deve retomar as negociações sobre o Tratado de Itaipu neste mês de dezembro, após apresentar justificativas sobre a acusação de espionagem feita pelo Paraguai durante as tratativas sobre o custo da energia da hidrelétrica binacional.
Em nota conjunta assinada pelos ministros das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, e do governo do Paraguai, Rubén Ramírez Lezcano, um relatório confidencial foi apresentado pelo governo Lula sobre as atividades da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em relação ao país vizinho entre junho de 2022 e março de 2023.
O período coincide com a conclusão do pagamento do financiamento de 50 anos para a construção da usina em Foz do Iguaçu (PR), na fronteira entre Brasil e Paraguai. Com a amortização da dívida, a expectativa do setor elétrico era de queda no valor pago pela energia pelo consumidor brasileiro, em consequência da economia com os custos em uma das maiores hidrelétricas do mundo.
Além de se arrastar há mais de dois anos, a negociação ficou ainda mais delicada, no último mês de março, depois que veio à tona a suspeita de que a Abin teria hackeado o sistema do país vizinho para ter acesso aos dados sigilosos no início das negociações com o Paraguai. O governo Lula culpou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo episódio que é apurado pela Polícia Federal (PL) no âmbito das investigações da “Abin paralela”.
Segundo o ministro Mauro Vieira, o governo Lula “tornou sem efeito a operação tão logo dela tomou conhecimento” e lamentou o impacto do episódio na relação bilateral. “O ministro Ramírez Lezcano recebeu o relatório confidencial e as explicações oferecidas por seu homólogo e, após um intercâmbio de pontos de vista, manifestou que o governo paraguaio dava por concluído o assunto”, diz o comunicado, que estabelece a retomada das negociações sobre a revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu na primeira quinzena de dezembro.
Ministro do governo Lula diz que gastos socioambientais vão acabar em 2027
As negociações entre Brasil e Paraguai foram suspensas em 2025 por causa da suspeita de espionagem, mantendo o entendimento bilateral entre os países formalizado em abril de 2024. A negociação frustrou o setor de energia elétrica no país, que esperava a redução do custo da operação de Itaipu com o fim do financiamento calculado em quase US$ 2 bilhões por ano.
Segundo o levantamento da Academia Nacional de Engenharia (ANE), a tarifa regulada, conforme o tratado, deveria ser de aproximadamente US$ 9/kW em 2024, após o fim do financiamento. No entanto, o valor negociado do Custo Unitário do Serviço de Eletricidade (Cuse) foi fixado em US$ 19,28/kW mês até 2026.
O governo Lula foi acusado de manter o custo de Itaipu acima da tarifa técnica para custear “gastos socioambientais”, entre eles mais de R$ 1 bilhão de recursos da empresa binacional para obras em Belém (PA) para receber a COP 30. Além disso, a Itaipu é responsável pela retomada da construção do campus da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), orçada em R$ 800 milhões pelo cofre da estatal.
Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que os custos socioambientais ocorrem desde 2009 e classificou a relação bilateral com o Paraguai como “extremamente conflituosa” em pontos da negociação como o valor da tarifa.
Silveira declarou que o governo Lula pretende acabar com os gastos socioambientais a partir de janeiro de 2027, o que será discutido com o Paraguai durante a revisão do Anexo C de Itaipu.
“Com autorização do presidente Lula, fizemos uma grande reunião no Palácio do Planalto, com a presença do ministro Fernando Haddad, e ficou estabelecido que a partir de 2027, a gente acaba com os custos sociais e volta exatamente na tarifa de 9 dólares”, projetou.
“Isso não pode ser uma decisão unilateral do Brasil. Para conseguir a assinatura do Paraguai, o ministro Mauro Vieira voltou ao Paraguai, me ligou, para restabelecer [as negociações], inclusive levou o relatório da Abin e da Polícia Federal sobre o caso da ‘pseudoespionagem’ que o Paraguai teria sofrido”, completou Silveira.
No entanto, o diretor-geral do lado brasileiro de Itaipu, Enio Verri, afirmou que os gastos socioambientais podem diminuir, mas devem ser mantidos como "missão" da empresa binacional. “Talvez nós não consigamos fazer investimentos tão amplos como estamos fazendo. Mas não há como pensar na Itaipu sem investimento socioambiental”, declarou Verri em resposta à Gazeta do Povo.
Espionagem e custo da tarifa: desconfiança marca revisão do Tratado de Itaipu
Apesar do anúncio, a retomada da negociação entre os países parceiros é vista com desconfiança dos dois lados da fronteira, principalmente por causa do conturbado histórico da revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu.
O presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata, esclareceu que a entidade não é contra os gastos socioambientais desde que os projetos estejam integrados ao setor ou dentro da área de influência da usina hidrelétrica. “Não somos contra os custos socioambientais ligados ao empreendimento – isso é parte do negócio –, sobretudo na área de influência do reservatório. O que contestamos é estender isso para todo o Paraná e até para municípios em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em obras que nada têm a ver com a usina”, contestou em entrevista à Gazeta do Povo.
Além disso, ele lembrou que nos últimos anos houve um crescimento dos valores destinados para os projetos socioambientais, com recursos da usina hidrelétrica para custeio de eventos e outras atividades “estranhas ao setor de energia elétrica”. “Desde 2022 houve um aumento de US$ 1,5 bilhão em investimentos, repartidos meio a meio entre Brasil e Paraguai, mas com o Brasil arcando com mais de 80% do custo total de Itaipu. É desequilibrado, insensato e muito pesado para o consumidor do Sul, Sudeste e Centro-Oeste.”
Além disso, Barata cobrou o envolvimento do Congresso para aprovação das diretrizes na gestão da Itaipu Binacional, o que não ocorreu com a guinada do orçamento para atender as demandas socioambientais na gestão petista a partir de 2023. “As obras socioambientais poderiam ser feitas, desde que não implicassem aumento gravoso de custo. Nesse caso, seria necessária a autorização do Congresso Nacional, que não houve. Portanto, além de economicamente injusto, é ilegal.”
A desconfiança também marca a negociação do outro lado da fronteira. Segundo a imprensa paraguaia, o deputado colorado Maurício Espínola cobrou transparência do país no processo e criticou o fato do Brasil apresentar um documento sigiloso sobre a suspeita de espionagem “A transparência é fundamental em casos de espionagem, pois afeta a soberania e a segurança nacional. O fato de o documento ser confidencial pode gerar dúvidas sobre a verdadeira intenção do governo brasileiro e a capacidade do governo paraguaio de proteger os interesses do país”, declarou o parlamentar.
Espínola cobrou que o presidente paraguaio, Santiago Peña, defenda a soberania energética para desenvolvimento nacional do setor no país vizinho. Uma das propostas que deve ser debatida na retomada da negociação é a autonomia para que o Paraguai possa vender o excedente da energia da hidrelétrica para outros países.
Hoje, o Brasil tem exclusividade para a compra da energia não consumida pelo parceiro, conforme o tratado de relação bilateral. “Itaipu não é um negócio comercial, é um pacto binacional de integração e compensação histórica. Os pactos se respeitam ou se renegociam com dignidade, dados e unidade institucional.”








