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A crescente demanda global por tecnologia e a reconfiguração das cadeias produtivas internacionais colocam o Brasil diante da possibilidade de ganhar um papel relevante em um dos setores mais estratégicos da atualidade — o de semicondutores: materiais capazes de conduzir eletricidade de forma controlada, funcionando como base essencial para a fabricação de chips, presentes em praticamente todos os dispositivos eletrônicos.
Com a disputa geopolítica por autonomia tecnológica e a busca por alternativas às atuais potências do setor, o cenário é propício para que novos players (empresas que atuam no desenvolvimento de semicondutores) ganhem espaço. Especialistas apontam que investir na produção de chips não é apenas uma questão de desenvolvimento industrial, e sim de soberania digital, segurança nacional e futuro econômico.
A pergunta hoje é: como o Brasil deve investir nesse setor tão promissor? “Sem chip, não há transformação digital soberana. Economias que não dominam essa tecnologia serão, mais cedo ou mais tarde, superadas. Estamos em um momento único para o Brasil se aprofundar no tema”, afirma Adão Villaverde, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação da Escola Politécnica da PUCRS.
De acordo com ele, investir em uma das etapas da cadeia produtiva é o mais estratégico do ponto de vista comercial, científico e geopolítico. A produção de semicondutores é um processo complexo, dividido em três etapas principais: o design (projeto do chip), a fabricação (manufatura dos circuitos em wafers de silício) e o encapsulamento e teste, a etapa final do processo produtivo, conhecida como backend, onde os chips são integrados aos circuitos e rigorosamente testados, para então serem colocados no mercado.
Setor de semicondutores gerou US$ 1 bi em 2024 no Brasil
Embora distante dos polos globais, no design e na fabricação, o Brasil ocupa um papel relevante na etapa de encapsulamento e teste. Nessa fase, os chips têm seu desempenho avaliado em condições reais de uso, garantindo a funcionalidade em setores estratégicos como tecnologia da informação, telecomunicações, indústria automotiva, saúde e bens de produção.
O setor brasileiro de semicondutores gerou uma receita de US$ 1 bilhão em 2024 e empregou diretamente cerca de 2,5 mil pessoas no Brasil. Foram mais de 200 milhões de chips encapsulados. A Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi) projeta que este valor aumenta para US$ 15 bilhões até 2033.
Em 2024, as vendas de semicondutores totalizaram US$ 627,6 bilhões em termos globais, um crescimento de 19,1% em relação ao ano anterior. A backend representa cerca de US$ 60 bilhões dessa movimentação, o que corresponde a aproximadamente 12% do setor globalmente.
O cenário mundial vem sendo alterado significativamente pelo aumento da demanda, o período pandêmico, a guerra entre Rússia e Ucrânia e a crise climática. Decorrências que levaram à falta de chips no mercado e exigiram a desconcentração da fabricação destes dispositivos nos países que detêm expertise na produção, os "Tigres Asiáticos": Taiwan, Coreia do Sul, China, Malásia, Singapura, Vietnã e Japão.
É nesse contexto que os Estados Unidos destinam US$ 280 bilhões para essa tecnologia, até o final da década, com o Chips and Science Act, um ambicioso pacote de estímulo à indústria de semicondutores. Em contrapartida, a China responde com uma projeção ainda mais agressiva, de quase US$ 1,4 trilhão em investimentos, valor cinco vezes superior ao previsto pelos norte-americanos. Essa escalada de investimentos tem ampliado as tensões geopolíticas e comerciais, especialmente em torno de Taiwan, que é peça-chave na cadeia global de semicondutores.

Pequenas indústrias são alternativa ao Brasil
Professor do Departamento de Física da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro (SP), Carlos Cesar Bof Bufon aponta que o Brasil precisa se reinventar para o desenvolvimento no setor de semicondutores. “Não considero viável - muito menos estratégico - replicar modelos industriais das últimas décadas. Embora não possamos competir com as lideranças globais do setor, podemos nos especializar em nichos estratégicos, atendendo substancial parcela da demanda doméstica. O desafio estrutural, ao lado da capacitação de recursos humanos e do financiamento à pesquisa, reside na implantação de uma cadeia de suprimentos integrada - hoje totalmente dependente de importações - condição que perpetua nossa vulnerabilidade competitiva neste setor", avalia o especialista.
Bufon defende que o Brasil invista no incentivo às indústrias de pequeno porte. “Diante das políticas atuais — que, diferentemente das adotadas por China e Coreia, não apresentam a mesma assertividade —, corremos o risco de perder nossa soberania, pois dependemos integralmente de insumos externos. Nossa dependência é alarmante. Por isso, é crucial investir no surgimento e no desenvolvimento de empresas menores, capacitando-as a fortalecer os elos estratégicos dessa cadeia produtiva", afirma.
A capacitação de profissionais especializados é a demanda mais urgente no segmento no Brasil, na visão do especialista. "A formação acadêmica é apenas o alicerce: precisamos desenvolver um contingente de profissionais não apenas qualificados para atender às demandas imediatas da indústria, mas também dotados de capacidade empreendedora para criar oportunidades em nosso ecossistema produtivo", afirma Bufon.
O professor avalia que a direção para o Brasil seria apostar em pesquisas que indiquem qual o futuro desse setor, como a eletrônica sustentável. “Temos condições de competir na eletrônica do futuro - aquela ambiental e socialmente relevante - mas não na do passado. Reerguer ou criar uma indústria nos moldes anteriores seria anacrônico". Para ele, o país deveria apostar na criação de espaços regionais de capacitação teórica e prática que atendam às demandas específicas e estratégicas de cada contexto local, sem perder de vista a relevância global.
Oportunidade estratégica ao Brasil passa por nichos de mercado e parcerias internacionais
Especialistas do mercado de semicondutores indicam que o futuro do Brasil no setor vai depender da capacidade de aproveitar nichos de mercado e parcerias internacionais. Adão Villaverde vê potencial no mercado de “chips maduros”, na faixa dos 100 nanômetros (unidade de medida de comprimento que corresponde a um bilionésimo de metro).
Ou seja, não se trata de competir com gigantes como Samsung e TSMC, que produzem chips de 3 nanômetros. “O objetivo é focar em um mercado que esses players não disputam, o que representa 46% do mercado global”, explica.
Os chamados chips maduros são semicondutores produzidos com tecnologias que já passaram da fase de ponta, mas que continuam sendo amplamente utilizados em diversos setores da economia. Ao contrário dos chips de última geração, usados em aplicações como inteligência artificial e smartphones de alto desempenho, os chips maduros atendem a demandas robustas e estáveis em áreas como automação industrial, equipamentos médicos, eletrodomésticos, veículos, telecomunicações, cartões inteligentes e dispositivos de controle.

Esses semicondutores são essenciais para a base tecnológica de qualquer país, pois garantem o funcionamento de sistemas críticos do cotidiano. Estima-se que mais de 70% da demanda global de semicondutores seja por chips maduros, o que evidencia sua relevância e estabilidade no mercado.
Diferentemente dos chips de última geração, que exigem investimentos bilionários em tecnologias altamente sofisticadas e cadeias produtivas complexas, os chips maduros permitem a construção de uma indústria nacional com custos mais acessíveis e domínio tecnológico possível em médio prazo.
Uma outra opção para o desenvolvimento do setor de semicondutores no Brasil seria a criação ou atração de empresas que realizam projetos de circuitos integrados (CIs) e desenvolvimento de ferramentas de automação de projeto eletrônico (EDA). "São opções que requerem um investimento milhares de vezes menor que o previsto para uma fábrica, e com grade retorno. Aproximadamente um terço dos US$ 550 bilhões anuais da receita mundial de semicondutores provém dessas empresas", aponta o especialista em semicondutores Júlio Leão.
Brasil tem promessas para impulsionar o setor
O Brasil possui dois pilares para o desenvolvimento do setor de semicondutores. Um deles é o Programa Brasil Semicondutores (Brasil Semicon), que visa dar impulso estratégico, com a previsão de um investimento de aproximadamente R$ 24,8 bilhões até 2035. Nesse processo foi liberada a prorrogação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis).
A segunda iniciativa federal é a reabilitação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que está em processo de revitalização, com foco na retomada de suas operações e na inserção competitiva no mercado global.
Como parte da estratégia de desenvolvimento, o presidente do Ceitec, Augusto Gadelha, participou no último mês da Missão Empresarial à China 2025, com objetivo de estabelecer parcerias com empresas daquele país em projetos prioritários, especialmente na área de semicondutores.
A aposta atual é em chips de potência, uma produção que visa atender setores como o da energia renovável, de placas fotovoltaicas, veículos elétricos e outros que demandam maior eficiência. "É uma opção que considero acertada, porque temos condições de fazê-la e é financeiramente viável. Há uma procura grande no mundo para atender a transição enérgica. Foi necessário fazer a aquisição de poucos equipamentos que vão transformar o Ceitec em um produtor de semicondutores de potência. Um processo que deve levar de dois a três anos, porque os equipamentos adquiridos são feitos sob demanda", explica Gadelha.
Outra demanda do Ceitec são os tags de identificação de radiofrequência, usados em áreas de pedágio e estacionamento, também utilizados para identificação pessoal e predial e para rastreio animal, que volta a ter desenvolvimento. "Estamos capacitando o Ceitec para que possamos ter transferência de tecnologia com as empresas estrangeiras parceiras", diz o presidente.
O pesquisador Carlos Cesar Bof Bufon aponta que um desafio crítico ao Ceitec diz respeito aos modelos de gestão das empresas públicas. “O modelo de gestão estatal é incompatível com a agilidade exigida pela indústria de semicondutores. Como competir com empresas globais quando se depende de processos licitatórios para adquirir insumos básicos? Nesse contexto, a adoção do modelo das Organizações Sociais pode ser a solução mais eficaz", opina.

Investimento chinês: empresa aplica R$ 650 milhões
Na última semana, entre os anúncios dos novos investimentos da China no Brasil, na casa dos R$ 27 bilhões, duas notícias causaram ânimo no setor brasileiro de semicondutores. Uma delas foi o acordo que visa o estabelecimento conjunto de um Centro de Transferência de Tecnologia entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil e o Ministério da Ciência e Tecnologia da República Popular da China.
O outro anúncio foi o investimento da Zilia, subsidiária da Longsys, que vai aplicar R$ 650 milhões na ampliação de fábricas de semicondutores e dispositivos de memória em São Paulo e Manaus. O valor anunciado é prometido para expansão da sua capacidade produtiva, ampliação do portfólio de produtos e busca de novas oportunidades de negócios em diferentes mercados.
"Além de fortalecermos as parcerias que temos com nossos fornecedores e clientes correntes e de buscarmos oferecer o que há de mais avançado em memórias, estamos lançando novos produtos e nos preparando para o mercado de varejo. Isso expandirá nosso alcance para além dos atuais segmentos de OEMs (original equipment manufacturers)", afirma Rogério Nunes, diretor-executivo da Zilia, em nota.
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