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A abertura de novas linhas de ônibus interestaduais está em compasso de espera desde que o juiz federal substituto da 6ª Vara Cível da Justiça Federal da 1ª Região, Manoel Pedro Martins de Castro Filho, determinou a suspensão do processo licitatório pretendido pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). A medida judicial, tomada na última sexta-feira (17), é válida por 60 dias, até que a autarquia ajuste a proposta de resolução.
Atualmente, cerca de 250 empresas estão à frente do transporte interestadual de passageiros por ônibus no país. No ano passado, o governo tentou abrir o setor para a entrada de novas empresas, porém o modelo adotado enfrentou diversos desafios. A principal dificuldade surgiu devido à corrida intensa das empresas para se cadastrarem em todas as rotas disponíveis. Como o registro era gratuito, muitas acabaram se inscrevendo para operar até 400 mil destinos.
Na nova etapa de credenciamento, a ANTT implementou uma taxa de R$ 150 por linha cadastrada e passou a exigir uma quantidade maior de informações das empresas interessadas. De acordo com as novas regras para o transporte rodoviário interestadual de passageiros, a ANTT realizará anualmente um processo de seleção para empresas interessadas em atuar no setor. Esse procedimento, conhecido como "janela de abertura", está previsto para ter início ainda este ano.
Introduzida por uma resolução da ANTT em dezembro de 2023, a iniciativa busca promover uma abertura gradual e controlada do mercado. No entanto, a iniciativa enfrenta forte resistência por parte das empresas já estabelecidas no setor, que temem os impactos da concorrência.
A decisão do juiz federal Castro Filho atende a solicitação da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), em ação civil pública que argumenta serem ilegais e inconstitucionais os termos estabelecidos para as empresas se candidatarem. "Da forma como está, os dispositivos do marco regulatório são aplicáveis somente a novas transportadoras. São eles: número máximo de outorgas, janelas de entrada, processo seletivo, leilão e sorteio de mercados. Estas normas vão contra a livre concorrência no regime de autorização vigente no setor", disse a associação.
Na decisão, o magistrado afirmou que a ANTT está agindo de forma contrária à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que prioriza a ampliação da concorrência no setor de transportes. Ele ressaltou que a agência não deve favorecer empresas já estabelecidas nem garantir uma transição gradual para um mercado mais competitivo.
Para André Porto, diretor executivo da Amobitec, “a decisão confirma o que sempre defendemos: a resolução da ANTT que regulamenta o transporte regular rodoviário coletivo interestadual de passageiros contém ilegalidades que prejudicam a democratização do serviço. A gente trabalha nessa discussão do marco regulatório desde o início. A regulamentação da ANTT distorce o conceito de autorização. Nesse regime, não se diz quais empresas podem competir”.
Para Felipe Freire, especialista em regulação da ANTT e mestre em Engenharia de Transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a decisão judicial de suspender a janela de abertura foi acertada. "De fato, as regras da Resolução ANTT nº 6.033/2023 favorecem as empresas que já atuam no setor, o que se agrava ainda mais com a ideia de um leilão pelas vagas em cada trecho".
De acordo com ele, ao limitar as vagas e propor disputa pelos mercados de forma isolada, a norma da ANTT reduz a atratividade do ingresso de novos operadores e favorece que empresas pertencentes a uma mesma associação combinem preços para impedir a abertura de novas vagas para os mercados.
"Não existe sentido econômico, operacional ou jurídico em limitar as vagas nos mercados, como a norma fez. Sem essa limitação, mercados que hoje são atendidos por apenas uma empresa poderiam ser atendidos por mais de duas operadoras, o que beneficiaria os usuários desse serviço", disse Freire.Na opinião dele, juridicamente não se trata de uma licitação: "nos termos da Lei de Licitações, é uma espécie de seleção pública", explica.
Para Frederico Turolla, sócio-fundador da consultoria Pezco Economics, "a assim chamada janela extraordinária traz danos irreversíveis à competição e, portanto, aos usuários do transporte interestadual por ônibus no Brasil", disse. Os municípios brasileiros são possíveis partes interessadas nessa suspensão, evidenciou ele.
"Os deslocamentos por ônibus têm potencial para levar conectividade e progresso a milhares de municípios, o que hoje deixa de acontecer por força da regulação inadequada da ANTT", critica Turolla.
Questionado se há ilegalidade na janela extraordinária de chamamento feito pela ANTT que se baseia em regras que limitavam a "concorrência em diversos mercados de transporte do país", Turolla afirmou que a regulação da ANTT sobre o transporte "vai contra o ambiente competitivo preconizado pela atual legislação setorial, refutando os princípios estabelecidos pela própria legislação a que deveria estar sujeita. Por isso, a 'janela extraordinária' deveria mesmo ser suspensa, mas eu acredito que seria melhor reverter toda a antirreforma promovida pela ANTT e retomar o caminho perdido de que a agência volte a trabalhar em uma regulação pró-competitiva".
A conselheira da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati) Leticia Pineschi reitera o posicionamento de que a ANTT deve realizar os chamamentos com responsabilidade para que não tenha como consequência a precarização do sistema, "que é organizado e seguro em um país de dimensões continentais, cuja matriz do transporte de pessoas é o rodoviário".
A ANTT tem a atribuição de fiscalizar e impor as regras do transporte. Na opinião da Abrati, a competência para regular o tema é da agência reguladora e, neste sentido, ainda que a Justiça entenda por corrigir falhas regulatórias, só deve fazer após ouvir o órgão regulador, respeitando a separação dos poderes.
Gustavo Lopes, da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (Anatrip), entende que essa janela tem de ser aberta, mas precisa haver estudos de viabilidade operacional, técnica e econômica, conforme determinado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e STF.
Quanto à suspensão da licitação para linhas de ônibus interestaduais, afirma Lopes: "Não é licitação, porque quando o STF julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 55496270, ele entendeu que o regime seria de autorização. Ou seja, a ANTT não precisa fazer nenhum regime de licitação para essas outorgas".
As linhas de ônibus oferecidas pela agência reguladora apresentavam dois perfis: operadas por apenas uma empresa rodoviária ou desocupadas, sem nenhuma oferta de serviço de ônibus rodoviário. As solicitações podiam ser feitas em um sistema disponibilizado pela ANTT e deveriam se restringir a três tipos:
- mercados que deixaram de ser atendidos após adequações nas antigas autorizações (Termo de Autorização – TAR e Licença Operacional – LOP)
- mercados que não estavam contemplados em licenças anteriores
- mercados que são atendidos por apenas uma transportadora.
A resistência ao método proposto, responde Freire, "vem tanto de empresas que não querem sofrer concorrência em seus mercados exclusivos quanto de novos operadores que não terão a liberdade de estruturar uma operação atrativa com as limitações impostas pela norma da agência".
“É difícil entender como a ANTT, a mesma agência que vem mostrando avanços em outras áreas do transporte terrestre, tenha realizado uma verdadeira antirreforma do transporte interestadual, bastante negativa para os interesses dos usuários e para a produtividade de toda a economia brasileira”, opinou o sócio-fundador da consultoria Pezco Economics.
A ANTT foi procurada pela Gazeta do Povo para comentar sobre as declarações das associações e especialistas e respondeu: “Sobre a decisão judicial, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) informa que se manifestará sobre o assunto diretamente à Justiça”.
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