Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Obras travadas

Por que o Rio Grande do Sul voltou a ter enchentes com mortes?

Com impasse sobre obras, Rio Grande do Sul (RS) registra 4 novas mortes em enchentes.
Com impasse sobre obras, Rio Grande do Sul registra quatro mortes em novo episódio de fortes enchentes. (Foto: Bruno Peres/Agência Brasil)

Ouça este conteúdo

Treze meses após enfrentar uma enchente histórica, o Rio Grande do Sul volta a se defrontar com a força das águas. Desde a segunda semana de junho, são quatro mortes em decorrência das chuvas, conforme a Defesa Civil do estado. Uma pessoa continua desaparecida. A população acompanha, com apreensão, e teme mais estragos.

“A gente fica o dia todo tenso, ainda mais com esse vento sul. Estamos rezando para que o vento vire e mande essa água para o outro lado”, desabafa Rafael Sartori, presidente da Associação do Comércio do Mercado Público Central de Porto Alegre (Ascomepc), mercado localizado no Centro Histórico, onde a água passou de 1,80 metro em 2024.

Na segunda-feira (23), o rio Jacuí atingiu 26,3 metros, a terceira maior marca já registrada, na capital gaúcha. Enquanto isso, 146 municípios relatam prejuízos causados por alagamentos e temporais. Jaguari decretou estado de calamidade pública. Outros 25 municípios estão em situação de emergência. Passa de 7 mil a quantidade de pessoas que estão desalojadas.

As chuvas castigam a região central do estado, afetando diretamente cidades como Santa Maria, Jaguari e toda a bacia do Rio Vacacaí. A água segue pelo Jacuí em direção a Porto Alegre. O impacto deve se intensificar nos próximos dias. A previsão é que o Guaíba atinja 3,6 metros nesta semana e continue subindo.

O sistema de proteção contra cheias em Porto Alegre, composto por diques e pelo Muro da Mauá, volta ao centro do debate. Com 2,6 quilômetros de extensão e 3 metros de altura, o muro de concreto armado possui 14 comportas. A estrutura foi erguida entre 1971 e 1974, após outra enchente histórica, ocorrida no ano de 1941.

A cota de alerta é quando a água bate nos 3 metros - chegando a 3,6 metros, declara-se patamar de inundação - a partir da cota de alerta, as comportas pode ser fechadas, conforme informações da prefeitura de Porto Alegre.

Impasse em projetos atrasa obras de proteção contra enchentes no RS.Impasse em projetos atrasa obras de proteção contra enchentes no RS. (Foto: Alexandre Pessoa/Agência Brasil)

O que atrasa uma solução mais eficaz contra enchentes no RS?

Impasses técnicos e políticos travam as obras para conter as enchentes no Rio Grande do Sul, segundo avaliação do geólogo Fábio Augusto Gomes Vieira Reis, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). De acordo com ele, a lentidão envolve exigências legais, contratações e compra de materiais — até em emergências.

“Hoje reina no Brasil a lógica de que é mais importante mostrar que seguiu as regras do que resolver o problema. Isso custa muito mais caro”, afirma. Ele também critica o sucateamento dos órgãos de controle e a demora em decisões de grande porte.

O deputado estadual Felipe Camozzato (Novo) também aponta a falta de prioridade dos governos. “Tanto o federal quanto o estadual não trataram o tema com a urgência necessária. Em vez disso, vimos gastos supérfluos e justificativas injustificáveis”, diz.

Camozzato reforça as críticas à má gestão dos recursos. “Os projetos avançam devagar. Não faltam diagnósticos, falta ação. E o resultado é trágico: vidas perdidas, famílias desabrigadas e uma população exposta pela omissão e má gestão.”

VEJA TAMBÉM:

Porto Alegre inicia fechamento das comportas

Na segunda-feira (23), o nível do lago Guaíba alcançou 2,83 metros no Cais Mauá. A cota de inundação é de três metros. Com o vento, a água transbordou e invadiu o calçamento.

Sete das 14 comportas continuam com falhas. Três delas, localizadas na zona norte, foram arrancadas ou danificadas nas enchentes de 2024 e ainda não foram substituídas. As comportas 11 e 14 contam com barreiras emergenciais feitas com sacos de areia. Já a comporta 12 permanece aberta.

Além disso, a obra para recuperar quatro comportas começou no último dia 3. O custo estimado é de R$ 3,1 milhões pela prefeitura porto-alegrense. Outras três serão substituídas por novas estruturas, com investimento de R$ 8 milhões. As demais já foram reformadas ou estão operando com fechamento provisório.

“Nós temos um sistema de proteção contra cheias que (inclui) alguns pontos queestão em construção, outros pontos estão prontos. A parte que está em construção nós podemos reforçá-la até chegar ao nível de cheia, que a gente espera que vá acontecer em determinado momento”, explica Bruno Vanuzzi, diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgoto de Porto Alegre (Dmae).

Metade das comportas do Guaíba continuam com falhas. Obras custam mais de R$ 11 milhões.Metade das comportas do Guaíba continuam com falhas. Obras custam mais de R$ 11 milhões. (Foto: Luciano Lanes/Prefeitura de Porto Alegre)

De acordo com a prefeitura de Porto Alegre, mais de R$ 240 milhões foram investidos, em um ano, na recuperação de estruturas, em obras de melhoria e em isenções de tarifas de água e esgoto para moradores atingidos pela enchente de maio de 2024.

A capital gaúcha conta com 68 quilômetros de diques, internos e externos. As obras para reforçar e elevar essas estruturas à cota de 5,8 metros começaram em agosto de 2024. Desde então, o primeiro trecho avançou para o que é considerado fase final e deve ser concluído até o fim de julho.

Por outro lado, a segunda frente de obras está paralisada. A primeira fase foi entregue em janeiro, mas a continuidade depende da remoção de 57 famílias que vivem irregularmente junto ou sobre o dique. O processo, no entanto, está suspenso por decisão judicial.

Além disso, a recuperação estrutural do Muro da Mauá teve início em agosto de 2024. A obra corrige danos no concreto armado e é conduzida pela Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura, com apoio técnico do Dmae. O trabalho segue orientações de um relatório preliminar do Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), contratado para avaliar a integridade do muro.

VEJA TAMBÉM:

Mapeamento expõe fragilidades locais

Após a enchente de 2024, o governo gaúcho criou o Mapa Único do Plano Rio Grande, para identificar áreas afetadas por alagamentos, enxurradas e deslizamentos. A ferramenta usa imagens de satélite e cruza dados com o Cadastro Único para acelerar o repasse de auxílios.

Outras instituições também se debruçaram sobre causas, impactos e áreas de risco. Um dos estudos, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de São José dos Campos, aponta que 18% da Região Metropolitana de Porto Alegre está em zona de risco extremo para inundações.

“Um dos pontos que mais chamou nossa atenção foi justamente a conjunção entre extremos climáticos e fragilidades locais – como o crescimento urbano desordenado, a redução de áreas naturais como campos e banhados, e a concentração populacional em áreas de baixa altitude e alta suscetibilidade à inundação”, afirma Enner Alcântara, líder da pesquisa.

Além disso, o Comando Rodoviário da Brigada Militar desenvolveu uma atualização diária com a situação das rodovias. Após as enchentes recentes, ao menos 22 rodovias estaduais seguem com o tráfego afetado, 11 bloqueadas totalmente e 11 parcialmente, segundo atualização confirmada na tarde desta quarta-feira (25).

Mais de 2,3 milhões de pessoas foram atingidas pelas enchentes de 2024 no RS.Mais de 2,3 milhões de pessoas foram atingidas pelas enchentes de 2024 no RS. (Foto: Ricardo Scutkert/Arquivo Agência Brasil)

Enchentes marcam a história do RS

No século XX, a maior tragédia ambiental do Rio Grande do Sul foi a cheia de 1941, que devastou Porto Alegre. Pesquisadores do Cemaden revisaram os dados daquela época para dimensionar os impactos.

Na ocasião, 15 mil casas foram inundadas e 70 mil pessoas — quase um quarto da população — precisaram sair de casa. Um terço dos comércios e indústrias ficou submerso por cerca de 40 dias.

Em 2024, as chuvas de maio afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas em 471 municípios. No auge da crise, 79 mil ficaram desabrigadas. O número de mortes chegou a 183.

VEJA TAMBÉM:

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.