
Desde que trocou o Japão pelo Brasil, Tomie Ohtake nunca aprendeu a pronunciar a letra "l". Há 77 anos no país e consagrada como uma das maiores pintoras brasileiras, para ela, galeria ainda é "gareria" e tela vira "tera". Às vésperas de iniciar as celebrações de seus 100 anos (dia 21 de novembro), ela ri do próprio sotaque: "Nunca aprendeu a falar português. Agora não aprende mais, né?"
Mas Tomie fala com parcimônia. Como sua obra, ela é rigorosa, suave e de poucos elementos. Se um poema haicai trata do mundo em 17 sílabas, afirma, por que ela deveria usar mais?
Sua carreira, que se iniciou aos 40 anos (só após ter criado os filhos), começa a ser revista. Abrindo os festejos do centenário, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, inaugura no começo do mês a primeira de uma série de mostras que serão dedicadas à artista até novembro. Tomie Ohtake Correspondências relaciona suas obras com as de Mira Schendel, Cildo Meireles e Nuno Ramos, entre outros. E, no dia 23 de fevereiro, a galeria Nara Roesler, também em São Paulo, exibe telas recentes da artista, de 2012 e 2013.
Ateliê
Quando se trata de Tomie, os críticos de arte dizem que vida e obra estão "amalgamados". A casa modernista que o filho Ruy Ohtake projetou há 44 anos no bairro Campo Belo, em São Paulo, de fato, parece o centro de tudo. Lá está seu ateliê, onde ela mandou instalar uma cama, de solteiro, ao lado das telas "assim, já fica olhando quando acorda".
E a sala de jantar não é só um ambiente a mais. Para Tomie, o "dia mais contente" é domingo, quando a mesa fica cheia. Há 30 anos, ela espera à cabeceira pela chegada dos filhos Ruy, 75 anos, e Ricardo, 70, diretor do Instituto Tomie Ohtake da nora Marcy (casada com Ricardo e sua assessora de imprensa) e dos dois netos, Rodrigo, 28 anos, e Elisa, 32.
Durante a semana, Tomie almoça sozinha, sempre às 13 horas. Tem a disciplina dos orientais. Acorda às 8 horas, toma banho, aplica um creme antirrugas e senta-se, às 9 hora, para o café. Três vezes na semana vai ao ateliê, onde um assistente a aguarda. Às terças e quintas, faz fisioterapia e, uma vez por semana, recebe a cabeleireira do bairro, que mantém seu corte rigorosamente na altura do queixo e os fios pintados de preto. Também costuma vestir-se de preto. Guarda as cores para as telas.
Cores
Quando desembarcou do navio que a trouxe, após 40 dias de viagem, de Kioto para São Paulo, a primeira sensação que teve foi relacionada a uma cor.
Tomie chegou ao Brasil Nakakubo, sem o sobrenome Ohtake. Veio acompanhada do irmão em 1936. Algum tempo depois, estourou a Guerra do Pacífico, e o irmão voltou. Morreu lutando. Mas Tomie tinha outro irmão em São Paulo, que mantinha um laboratório em sociedade com Oshio Ohtake, "esse moço muito boa pessoa e muito bonito", diz ela, sorridente.
Em um mês no país, aos 23 anos, ela se casou com Oshio.
Um ano depois do casamento, nasceu Ruy. A família Ohtake, então, mudou-se para o Rio, onde Tomie desfrutou do mar, de que tanto gosta.
Recém-casada, a jovem Tomie se fez a pergunta: "Família é mais importante que trabalho?". Já tinha apreço pela pintura e, no Japão, comprava catálogos e desenhava. Mas a decisão de priorizar a família a manteve distante dos pincéis até os 40 anos, quando encontrou o artista Keisuke Sugano.
Ele dava aulas a Tomie e outros japoneses. Pedia aos alunos que pintassem uma flor, por exemplo. Ao fim, criticava as pinturas. A de Tomie, no primeiro dia, foi eleita a melhor. Começava ali uma carreira que nasceu figurativa e tornou-se abstrata. Dez meses depois, ela já exibia telas no Museu de Arte de São Paulo.
Depois da pintura abstrata dos anos 1960, Tomie se aventurou pelas gravuras nos anos 1970. Em 1977, ficou viúva de Oshio Ohtake e não voltou a se casar. Na década seguinte, sua obra foi marcada por cores contrastantes e intensas, talvez inspirada em Mark Rothko, seu pintor preferido. Foi também nos anos 1980 que floresceu sua produção de esculturas, muitas delas públicas, como a "Estrela-do-mar" (1985), instalada na Lagoa, no Rio, que gerou polêmica, foi removida para manutenção em 1990 e nunca voltou.
Na casa onde vive, fez o paisagismo com mudas que ganhou de Burle Marx. Ao lado das plantas e da piscina, estão esculturas suas. Todos os dias, ela alimenta os pássaros no jardim, vizinho a seu ateliê.
Antes de passar por uma cirurgia na coluna aos 93 anos, Tomie era assídua de exposições. No ano passado, teve pneumonia, caiu doente e "a perna ficou muito fraquinha, né?". Passou a usar cadeira de rodas e não vai mais a vernissages. Sobre arte contemporânea, não se sente muito tocada pelo que vê. Gosta de Regina Silveira, Tunga e Adriana Varejão. Arte, diz, é para ser sentida.
Crítica
O curador Paulo Herkenhoff costuma dizer que "não há pintura brasileira sem Tomie Ohtake". Para o crítico Frederico Morais, ela soube equilibrar a tradição japonesa e a vivência no Brasil. Tomie criou algo muito particular entre os artistas nipo-brasileiros, afirma ele, ao combinar o informalismo dos anos 1950 com o "desejo de organizar" o informal.



