
Até pouco tempo atrás, não havia vida inteligente depois dos 30. "Não acredite em ninguém com mais de 30 anos," era o lema dos hippies. A mulher acabava ao fazer 30 anos, no Brasil era jocosamente conhecida como "balzaquiana", graças ao romance A Mulher de 30 anos, de Honoré Balzac. O herói do filme de Louis Malle, Trinta Anos esta Noite, suicida-se ao completar essa idade.
Tudo mudou no século 21. Hoje, chegar a uma idade avançada é um emblema ostentado com todo orgulho. Neste ano, o Brasil comemora os 70 anos de cinco gigantes da MPB. Dia 11 de fevereiro, Sérgio Mendes inaugurou a nova idade. Lembro bem do garoto baixinho que tocava nos apartamentos da Zona Sul carioca e corria para pegar a última barca de Niterói, sua cidade natal. Era alvo de gozações da maldosa turma da bossa, mas tocava divinamente, com um toque do pianista de jazz Horace Silver.
Em meados dos anos 60, o garoto estourava nos States, que endeusava o "Mendes touch". Gravou "The Fool on the Hill" e vendeu mais do que os autores da música, os Beatles. É ocioso descrever o sucesso de Sérgio Mendes a partir de 1964, quando ele deixou o Brasil, depois de duas semanas de prisão domiciliar no início da ditadura. Sequer pensava em política, mas os militares desconfiavam da sua profissão: músico. Perseguindo o jazz, Sérgio Mendes injetou na música internacional o inconfundível e contagiante tempero brasileiro.
Em 12 de fevereiro, Dominguinhos emplacou os 70. No dia seguinte, após uma revisão completa (desentupiu as veias), o sanfoneiro festejou a data no Canto da Ema, reduto do forró em São Paulo. Aos 16 anos, José Domingos de Morais, de Garanhuns, Pernambuco, fez suas primeiras gravações ao lado de Luiz Gonzaga, de quem foi eleito sucessor. Foram muitos anos de estrada até 1973, quando fez sucesso mundial com "Eu Só Quero um Xodó", parceria com Anastácia, gravado por Gilberto Gil. Exímio improvisador, Dominguinhos compareceu aos principais festivais de jazz. "Tocar eu toco de tudo. Mas só quando toco toada, baião e forró é que eu sinto aquela coisa flamejante aqui no peito."
Dupla dinâmica
Parceiros em mais de 500 composições, o Rei e o Tremendão quem diria? também estão chegando aos 70. Roberto Carlos Braga, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, em 19 de abril; Erasmo Esteves Carlos, no Rio de Janeiro, em 5 de junho de 1941. Roberto queria ser cantor romântico, mirou em João Gilberto mas saiu algo completamente diferente. Erasmo idolatrava Elvis Presley, mas enveredou por outros caminhos. Roberto e Erasmo, influenciados pelo rock-and-roll e pela "onda britânica" com um ouvido aberto também para os sons da rádio e da bossa nova criaram uma versão brasileira do rock, a Jovem Guarda. Com o passar das décadas, Roberto tornou-se, finalmente, o Rei da nova canção romântica brasileira; Erasmo, mais inquieto, experimentou com outros estilos, entre eles a tropicália, o samba-rock e o soul.
Múltiplo
Ney de Sousa Pereira nasceu em 1.º de agosto de 1941 em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul. Mas só 30 anos depois nasceu Ney Matogrosso, em São Paulo, talento múltiplo em busca de um canal de expressão. Cantava, pintava, interpretava, mas só se descobriu quando conheceu o produtor musical João Ricardo, que procurava um cantor de voz aguda para um grupo musical chamado Secos & Molhados.
Com maquiagem bizarra marcando o visual andrógino, o S&M, apesar da passagem meteórica, foi um divisor de águas na MPB, com dois álbuns milionários. Já em 1974, Ney iniciava uma vitoriosa carreira solo e, além de cantor, atacava no teatro, no cinema, como coreógrafo e dançarino, cenógrafo e até iluminador. Ney festejará os 70 anos com um rico pacote: a estreia do filme Luz nas Trevas/A Volta do Bandido da Luz Vermelha, em que faz o papel principal; a conclusão do documentário Olho Nu, que mostra sua vida desde a infância, em Mato Grosso; o lançamento do CD e DVD Beijo Bandido ao Vivo, show que faz em São Paulo de 18 a 20 de fevereiro; a estreia paulista do monólogo Dentro da Noite, sob sua direção; a gravação de um novo CD, com "um repertório chocante."
Outras estrelas da MPB chegarão aos 70 nos próximos cinco anos:
Em 2012, Jorge Benjor (22 de março), carioca de Madureira, o mago de canções envolventes, que começou na bossa com "Mas Que Nada" e aderiu à Tropicália, compondo um de seus grandes hinos, "País Tropical". Gilberto Gil (26 de junho), o baiano de Salvador que sacudiu o país com "Aquele Abraço", autêntico hino contra a ditadura. Caetano Veloso (7 de agosto), o baiano de Santo Amaro, artífice do álbum-manifesto Tropicália, de 1968. E, é claro, Milton Nascimento (26 de outubro), o mineiro nascido no Rio, autor de canções imortais como "Travessia", "Ponta de Areia", "Maria Maria" e "Nada Será Como Antes".
Em 2013, é a vez de Edu Lobo, nascido no Rio em 29 de agosto de 1943. Iniciando pela bossa, parceiro de Vinícius, Edu virou "engajado", com a trilha de Arena Conta Zumbi, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri. Em 1983, com Chico Buarque, fez O Grande Circo Místico, uma mescla de música, balé, ópera, circo, teatro e poesia que partiu em turnê de dois anos pelo país, com artistas como Gal, Gil e Milton.
Em 2014, Chico Buarque (Rio, 19 de junho) entra para o Clube dos Setenta. O garoto-prodígio que estourou com canções descompromissadas como "A Banda" e "Carolina", adensou sua consciência social e acabou compondo uma verdadeira Comédia Humana (série de romances de Balzac) musical do Brasil da segunda metade do século 20.
Os setentões de 2015 incluem Ivan Lins (Rio, 16 de junho), um dos compositores brasileiros de maior sucesso internacional (favorito dos jazzistas) e Gal Costa (Salvador, 26 de setembro), a Musa da Tropicália, imortalizada por sua interpretação de canções de Caetano como "Baby" e "Divino, Maravilhoso".
Em 2016 fechando a lista dos próximos cinco anos chega aos 70 Maria Bethânia (Santo Amaro da Purificação, 18 de junho). Bethânia irrompeu como um furacão no cenário da MPB em 1965 ao substituir Nara Leão no espetáculo Opinião.
Seu nome de batismo foi sugerido pelo mano Caetano, inspirado na música de Capiba que fazia sucesso na voz de Nelson Gonçalves, Maria Bethânia. Essa é uma característica comum da geração de setentões da MPB. Todos nasceram embalados pelos sons da Era do Rádio. E, 20 anos depois, fizeram seu nome na televisão, principalmente nos grandes festivais de música: Edu Lobo ("Arrastão", "Ponteio"), Caetano ("Alegria, Alegria"), Gilberto Gil ("Domingo no Parque"), Milton Nascimento ("Travessia"), Chico Buarque ("Roda Viva", "Sabiá"); Roberto e Erasmo nos programas de televisão da Jovem Guarda.
Ditadura
A maioria de nossos setentões alçou vôo nos anos iniciais da ditadura militar. Engajados ou não, foram todos vistos com desconfiança pelo poder. Até os alienados cabeludos da Jovem Guarda não eram considerados bom exemplo para a juventude brasileira os homens de farda queriam os jovens ordeiros e enquadrados. A partir de 1968, com a decretação do AI-5, a censura engrossou. Os músicos brasileiros fizeram milagres para dar o seu recado, aspelando para uma linguagem cifrada e simbólica. O "Carcará" ("Pega, mata e come!") tornou-se na voz de Bethânia uma espécie de anjo vingador.
Exilado em Londres, Gilberto Gil escreveu em 1969 "Aquele Abraço", uma exaltação ao espírito libertário do brasileiro. Em 1968, um grupo paramilitar, o Comando de Caça aos Comunistas, depredou o cenário e espancou os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo e em Porto Alegre, e o espetáculo foi proibido. Ao voltar do exílio na Itália, Chico lançou em 1970 "Apesar de Você" ("Apesar de você/ amanhã há de ser outro dia."), proibido nas rádios do país.
Chico e Gil compuseram "Cálice", em 1973. O refrão "Pai, afasta de mim esse cálice", referia-se na verdade ao "Cale-se!" da censura, e a letra sutil era lida pelo ouvinte como um protesto: "Mesmo calada a boca/Resta o peito."
Chico chegou a fazer sambas de protesto sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Caetano e Gil foram presos no final de 1968, tiveram as cabeças raspadas e ficaram presos num quartel do Rio até a quarta-feira de cinzas. Ficaram confinados em Salvador até julho de 1969, quando partiram para o exílio em Londres. Não faziam música politicamente explícita, mas seu comportamento "tropicalista" irritava profundamente a ditadura.
Aqueles tempos radicais os Anos de Chumbo passaram e os setentões da MPB souberam se adaptar às mudanças profundas por que passaram nas décadas seguintes o Brasil e o mundo. Continuam todos ativos e criativos. Uma coisa é difícil hoje: enxergar no horizonte de nossa música futuros setentões tão fabulosos como eles...
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