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Literatura

A “caixa preta” da contracultura

O escritor inglês Barry Miles lança no Brasil sua biografia sobre Jack Kerouac, “o Rei dos Beats”

Em passagem pelo Brasil, Barry Miles atraiu uma plateia de jovens interessados pela geração beat | Beto Figueiroa/O Santo
Em passagem pelo Brasil, Barry Miles atraiu uma plateia de jovens interessados pela geração beat (Foto: Beto Figueiroa/O Santo)
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Aos 69 anos, Barry Miles já publicou uns 50 livros, a grande maioria sobre temas e personagens da contracultura. Ele veio ao Brasil participar da Fliporto em Olinda e lançar sua biografia Jack Kerouac: King of the Beats (José Olympio). Ao apresentá-lo à plateia da Casa do Saber, no Rio de Janeiro, veio-me à cabeça uma imagem perfeita: Barry é a "caixa preta" dos anos 1950 e 1960. Sua memória privilegiada registrou com extrema clareza as causas e os efeitos do choque cultural destas décadas e seus desdobramentos até hoje. Impressionou-me a quantidade de jovens interessados em Kerouac e nos beats que foram ouvi-lo.

Tudo começou em 1959, quando Barry, 16 anos, morando na região inglesa dos Cotswolds, viu na tevê um documentário sobre a Geração Beat em São Francisco. Conseguiu um ca­tálogo da editora City Lights – um cartão postal com uma lista datilografada de 20 títulos – e encomendou um lote, no valor de US$ 2, que incluía On the Road, de Kerouac, e Howl, de Allen Ginsberg. No dia em que o carteiro lhe entregou o pacote (levando os selos) abriu-se para ele um mundo novo de "sexo, drogas e jazz". Na época, era tudo muito chato na Inglaterra. Até os Angry Young Men britânicos, eram mais britânicos do que zangados. Mick Jagger descreveu o dilema em "Street Fighting Man": "O que pode um pobre jovem fazer a não ser cantar numa banda de roquenrol?/ Pois na sonolenta cidade de Londres não há lugar para um valentão de rua."

Barry não foi cantar numa banda de rock, mas, permutando Penguins ingleses por livros da City Lights, acabou fundando a livraria e galeria de arte Indica, no centro de Londres. Paul McCartney virou freguês e Miles convenceu o novo milionário a financiar um jornal independente, o International Times, um dos arautos da contracultura na Inglaterra. Íntimos do beatle, Barry e sua mulher, Susan, iniciaram Paul nas delícias dos hash brownies – brownies de haxixe. Outro beatle começou a frequentar a Indica, John Lennon, e foi lá que conheceu Yoko Ono, quando montava sua exposição Pinturas e Objetos Inacabados. Impressionado, Lennon apaixonou-se pela japonesa. Muita gente estigmatizou Barry Miles – promotor involuntário do encontro – como "o homem que separou os Beatles..." A proximidade dos superastros o levou a trabalhar com eles, dirigindo o selo vanguardista Zapple – de breve duração, por causa do pesadelo corporativo dos Beatles.

Cercando os beats

Em 1970, Barry e a mulher, perseguindo o sonho de uma casa no campo, foram morar na fazenda de Allen Ginsberg, no estado de Nova York. O casamento não resistiu à placidez rural e Barry voltou à Inglaterra. A esta altura, Kerouac já tinha morrido, mas Miles começou a cercá-lo por todos os lados, aprofundando suas relações com os beats sobreviventes, principalmente Ginsberg e Burroughs. Longas matérias e entrevistas na imprensa alternativa o mantiveram ocupado nos seventies – a década em que começou a assentar a poeira dos fifties e dos sixties. Só em 1978, aos 35 anos, publicou seu primeiro livro, Bob Dylan. E não parou mais. Outras biografias saíram, aliando o rigor da pesquisa erudita à garra do jornalista: Allen Ginsberg (1989), William Burroughs: El Hombre Invisible (1993), Paul McCartney: Many Years from Now (1997), Jack Kerouac: King of the Beats (2001), Zappa: A Biography (2005); Charles Bukowski (2005).

Kerouac: "Admiro-o como escritor, mas bem menos como homem. Abandonou a filha para perfilhar a própria mãe, num caso edipiano brabo. Não resistiu ao sucesso e afogou seu talento na bebida." Zappa: "Um tremendo workaholic, não bebia nem se drogava para arrancar o máximo de seus músicos e de si mesmo." Bukowski: "Um autêntico machão. Recebeu-me num apartamento entulhado de papeis velhos, six-packs, e uma puta seminua de meia arrastão sentada na cama." Paul McCartney: "Um cara legal, falou de tudo, drogas, sexo, etc, só omitiu antigas namoradas para não magoar a mulher, Linda, que estava morrendo de câncer."

Barry está ultimando a biografia definitiva de Williams Burroughs – "o mais fascinante de todos" – a ser lançada em 2014, no centenário de nascimento do decano dos beats.

E uma biografia de Barry Miles? Não está nos seus planos. Mesmo porque, em cada palavra das dezenas de livros que escreveu, Miles, com percepção e sentimento, injetou muito da sua própria vida.

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