
A primeira reação do cão quando é atingido por uma pedra é morder a pedra, e não quem a atirou. Essa reação pode também ser a adotada por músicos que se embrenham na recriação de uma obra musical, esquecendo de analisar e aprofundar na causa última da mesma obra: o autor.
O mundo inicia contagem regressiva para, no próximo mês, homenagear o bicentenário de nascimento de um dos maiores filhos que a Polônia gerou. O poeta do piano como Chopin (1810-1849) é comumente designado foi, na realidade, o menos romântico dos artistas. Enquanto muitos definiam o romantismo como uma guerra dos modernos (eles próprios) contra os antigos (seus predecessores), por meio de manifestos e reivindicações, Chopin se apegava ao passado, inspirando-se em Haydn, Mozart e, principalmente, Bach, de quem absorveu sua maestria na técnica do contraponto, o que lhe deu estonteante facilidade de controle de vozes melódicas em suas obras (vale a pena lembrar que O Cravo Bem Temperadofoi a única partitura levada por Chopin em sua famosa viagem à ilha de Maiorca).
Chopin nutria dúvidas sobre o que ele mesmo denominava "momentos de falta de bom gosto" em Beethoven, exteriorizava desinteresse pela música de Schubert e, em geral, desdenhava os contemporâneos Berlioz, Schumann e Liszt, com quem, mais tarde, manteria uma complicada relação de amizade e rivalidade. Na arte, preferia o tradicional às ousadas combinações de forma, luz e cores. Social e politicamente era ainda mais conservador. No entanto, suas Polonaises introduziram no terreno da música a inovação do impacto nacionalista e do pendor patriótico, transformando-o no modelo proeminente de utilização de sua terra natal como fonte de inspiração.
Compositor polonês, filho de pai francês: a origem mista explica a combinação da melancolia eslava com a elegância francesa de sua arte. Embora de origem modesta, a refinada educação baseada em sólidos valores éticos recebida no lar, fez surgir em sua personalidade a característica galante da distinção aristocrática, mais pertencente à alma do que ao corpo: era na alma que surgia sua força estarrecedora sendo o corpo frágil, próprio de um homem de pouco mais de 1,50m de altura, 38 kg e doente.
O célebre compositor húngaro Franz Liszt afirmou serem as Polonaises suas mais formosas inspirações. Ao escutá-las acredita-se ouvir o andar, mais que firme, pesado, de homens que afrontam orgulhosos de valentia tudo o que a sorte possa trazer de injusto. É a mensagem da esperança e do otimismo, do espírito combativo, mesmo que permeado de dúvidas. As destemidas repetições melódicas de figuras temáticas utilizadas em sua Polonaise Op.44 e na célebre Polonaise Op.53, a "Heróica", unidas ao vigor enérgico do característico pulso ternário, adquirem na leitura do mestre polonês uma dimensão insuspeitada, onde não há espaço para a apatia ou a indiferença. Marciais quase todas, reproduzem tanto a bravura de um povo que relembra os tempos gloriosos de seus salões aristocráticos como o fracasso de quem é massacrado por numerosas guerras: analisá-las e interpretá-las é descrever uma parte da história da Polônia que Chopin tanto amou e pela qual tanto batalhou no campo raso de seu piano.
As origens da dança polonaise também designada pollaca perdem-se no passado. Acredita-se que sua primeira apresentação oficial tenha ocorrido na cidade de Cracóvia, em 1574, durante cortejo da nobreza ante seu novo rei, Henrique III de Valois. Mais tarde, os salões aristocráticos foram invadidos pelo elegante hábito de iniciar suas festas ao som dessa dança: o anfitrião convidava a mais nobre e respeitada das damas presentes (não necessariamente a mais formosa) para início do baile sendo, a seguir, acompanhado pelos restantes cavalheiros presentes, todos formando pares da mais alta estirpe, em procissão dançante pelo suntuoso salão, em elegante vestimenta.
O ano de 1810, que fez nascer Frederic Chopin na pequena vila de Zelazowa-Wola, nos arredores de Varsóvia, fez também da dança polonaise rainha suprema, mesmo com a existência de muitas outras formas de dança espalhadas pela Europa. Adotada como forma musical a ser explorada, inclusive por compositores como Bach, foi a adotada pelo jovem Frycek para início de sua carreira na área da composição e improvisação: as Polonaises N.º 11 em Sol Menor e N.º 12 em Si Bemol Maior, datadas de 1817, são formalmente consideradas suas primeiras composições. À exceção da indicação forte da abertura da Polonaise N.º 12 e da indicação piano localizada em seu quinto compasso, todas as outras indicações encontradas na partitura, inclusive as da autorizada edição Paderewski, são somente editoriais, carecendo ainda do amadurecimento psicológico e emocional fortemente encontrados em suas polonaises posteriores. Após quase trinta anos, em sua veemente Polonaise em Lá Bemol Maior, Op.61, Polonaise-Fantaisie, sua última obra para piano em grande escala, o quadro emocional traçado é bastante diverso, representando verdadeira radiografia da personalidade e estilo do autor.
A tão almejada liberdade política buscada por muitos poloneses reflete-se nesta obra, para desafio do artista, em extrema liberdade estrutural de expressão e forma, dificultando imensamente o encontro da exata coesão interpretativa. O pulso ternário, característico do gênero e indicado pelo autor com a tempo giusto em seu vigésimo segundo compasso, chega a correr o risco de ser dirimido em seu rigor rítmico ou até mesmo esquecido pelos intérpretes que se deixam levar pela atmosfera nebulosa, temerosa e insegura, reflexos do interior do autor e densamente explorada no início da obra. Em aparente atitude contraditória, Chopin procura como que transferir todas as suas dúvidas aos pianistas de todos os tempos, fazendo-os vivenciar sua incerteza na busca da verdadeira liberdade. A atmosfera irresoluta faz-se novamente sentir, agora de modo mais drástico, ao final da obra, onde o autor faz esperar por 14 compassos a necessária resolução harmônica entre a longa seção em si maior, executada sobre um pedal de tônica, em piano, e o tema final interpretado sobre um pedal de dominante, em lá bemol maior, executado em fortíssimo: é a recusa em permitir que ocorra o retorno ao tema final na tônica, aumentando sensivelmente a tensão dramática. Indubitavelmente, uma das mais radicais inovações do mestre polonês.
Liszt afirmou não haver nesta obra quadros luminosos ou animados, repleta de uma tristeza assustada. Saint-Saens, julgando excessiva a severidade da análise, enxergava a obra como um legado, um testamento de quem deixa esta vida, de confiança na imortalidade, próprios de quem vivenciou experiências amorosas repletas de instabilidade e de quem convive com o avanço crescente de uma tuberculose grave e incurável. De fato, Schumann condensou o estilo chopiniano ao defini-lo como "verdadeiras balas de canhão escondidas sob flores".
Os anos 1845-1846 tinham deteriorado significativamente a situação emocional de Chopin pelo agravamento de sua relação amorosa com a escritora George Sand: não se previa a tão próxima ruptura. A obra Lucrecia Floriani, escrita e publicada pela escritora, funcionou, sem dúvida, como uma válvula de escape para relatar o peso opressivo de uma ligação que a paixão já não mais sustinha, mas acelerou o afastamento com suas descrições pouco cuidadosas do caráter daquele que estava tão perto dela e, ao mesmo tempo, tão longe. Certamente a lembrança do amor de suas inúmeras admiradoras desde a pureza límpida de seu afeto com Constança Gladowska, sua primeira paixão, até a intensidade da decepção pelo frio rompimento com Maria Wodzinski, sua noiva prometida somente serviu para avivar essa nova dor.
Outro fator explicativo para as alternâncias anímicas encontradas nas Polonaises está baseado no claro discernimento da transitoriedade desta vida, na limitação dos bens deste mundo, traduzidos em ansiedade musical, em uma necessidade de sentido para a existência.
*Álvaro Siviero é pianista erudito.



