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A intimidade da nova literatura erótica

Uma boa estratégia de divulgação e o investimento das editoras no gênero esquentou o mercado no Brasil. Além do valor comercial, o interesse na área reflete mudanças de comportamento

E.L. James, autora do estrondoso Cinquenta Tons de Cinza |
E.L. James, autora do estrondoso Cinquenta Tons de Cinza (Foto: )
A norte-americana Sylvia Day consquistou as brasileiras |

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A norte-americana Sylvia Day consquistou as brasileiras

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Está no dicionário Collins: o termo mommy porn virou verbete e denomina a literatura erótica voltada para mulheres, depois que o romance Cinquenta Tons de Cinza – lançado em 2011 na Inglaterra e em 2012 no Brasil –, da britânica E.L James, ganhou meio mundo. Como não podia deixar de ser, o livro virou filme. Com estreia prevista para fevereiro de 2015, a divulgação do trailer com a história de Christian Grey e Anastasia Steele, no último dia 24, fez com que o assunto fosse o mais debatido nas redes sociais, e a "avalanche" de dois anos atrás ganhasse novo capítulo: semana passada, o livro voltou à lista dos mais vendidos.

Desde os anos 1970, quando autoras como Cassandra Rios (1932-2002) fizeram sucesso, não se viam tantos livros sobre sexo nas prateleiras. O assunto, porém, não é novidade na literatura, a exemplo de clássicos como Decamerão, de Giovanni Boccaccio e 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade. Porém, a "onda" deflagrada por Cinquenta Tons, lançado no país pela editora Intrínseca após um leilão disputadíssimo – o primeiro número da trilogia vendeu 1 milhão e 800 mil exemplares –, fez brilhar os olhos do mercado editorial, que se mexeu.

Logo, além de E.L. James, outra autora, a americana Sylvia Day, conquistou as brasileiras – o primeiro título da trilogia Crossfire (que vai virar série de tevê), Toda Sua, chegou ao país pela Paralela, que decidiu investir na obra baseada no sucesso do romance britânico. "Percebemos que existia um grande interesse dos leitores por histórias como essa. Não só por literatura erótica, mas por romances que tratassem de relacionamentos e que trouxessem também o envolvimento sexual dos personagens", diz a editora da Paralela, Lilia Zambon.

A aposta foi certeira: até agora, meio milhão de livros de Sylvia foram vendidos no Brasil. A autora causou furor de popstar na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no ano passado. "De fato, a recepção foi maior do que esperávamos. As leitoras ficaram muito emocionadas: umas gritavam, outras choravam, fizeram centenas de perguntas. É muito legal ver a relação que os leitores desenvolvem com o autor. E não só mulheres. Tivemos muitos homens na fila", conta Lilia.

No mercado há 20 anos, o publisher da Editora Valentina, Rafael Goldkorn, lançou recentemente Intenso Demais, parte da trilogia Rock Star, de S.C Stephens, fenômeno de autopublicação nos Estados Unidos – a obra que pincela erotismo em suas histórias bem românticas. Goldkorn percebe que há um interesse maior dos leitores em encontrar o erótico na literatura. Além disso, o movimento faz parte de uma nova onda literária, diz. "O mundo do livro está sempre se renovando. Muita gente acredita que As Brumas de Avalon (de Marion Zimmer Bradley, publicado por aqui em 1983), por exemplo, despertou o interesse pelo esoterismo no Brasil. Assim como Harry Potter pela magia, e assim por diante."

Entretanto, essa procura repentina não é apenas reflexo do bom jogo de marketing das editoras, mas mostra uma postura mais "livre" da mulher, influenciada pelos movimentos de contracultura e feminista a partir da década de 1960, acredita a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins. "O sexo sempre foi muito reprimido, visto como sujo e abominável, principalmente para as mulheres. É evidente que, a partir dos movimentos de contracultura, as mulheres admitem que sexo é bom. Com esses romances, elas mostram que querem fazer sexo sim, e também o que têm vontade", frisa.

O professor de Letras da PUC-PR, Marcelo Franz, salienta que o investimento das editoras no tema não é tão recente assim– o que muda constantemente é o perfil de quem lê. "A partir dos anos 1960, no mundo todo, percebemos uma liberação dos costumes, da quebra do moralismo. Com isso, o sexo se constituiu como mais um tema comercial."

Nos anos 1970, quando Cassandra Rios era a "best-seller erótica" da vez, o linguajar da autora, pornográfico, retratava uma rebeldia provocativa. "Era um momento de estabelecer uma nova ordem reprimida há tanto tempo, uma revolução discursiva mais propriamente dita, que ia ao contrário da ordem vigente. Hoje, as mulheres modificaram totalmente o seu perfil, e se percebe um apelo para um erotismo mais liberal" crê Franz.

"Amor"

Apesar da suposta ousadia, os livros eróticos que viraram febre no Brasil e no mundo ainda trazem em seu bojo a velha ideia do amor romântico, com o homem sempre no papel de "salvador" da mulher. Além disso, o erotismo, por incrível que pareça, é velado, crê a jornalista, bacharela em direito e especialista em gênero e sexualidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Nádia Lapa. Ela é autora do blog Cem Homens, em que relata as suas experiências sexuais – as histórias foram reunidas posteriormente no livro Cem Homens em Um Ano (Editora Matrix).

Nádia frisa que não há como ignorar um fenômeno literário como Cinquenta Tons, mas não conseguiu ler mais do que um volume e meio da trilogia. "Ele abre espaço para outros livros, e não podemos ignorar. Mas achei muito ruim. Além de problemas de tradução, é um livro pudico. Não fala, por exemplo, o nome dos órgãos sexuais, e achei isso muito engraçado. Um livro, teoricamente de libertação, que é extremamente pudico." Além da falta de clareza, Nádia também desaprova o fato de o protagonista Christian Grey ser o responsável pela descoberta sexual de Anastasia, que era virgem até conhecer o galã. "Enquanto é ela quem deveria descobrir." O sexo relatado de uma maneira um tanto espetacular é outro fator que a incomodou na trama. "Retratar uma mulher de 21 anos que nunca transou, e goza na primeira vez, é bem fora da realidade. Fora que o desejo dele de ser dominador, no livro, é relacionado com um trauma de infância, o que estigmatiza os praticantes do sadomasoquismo."

Regina Navarro Lins afirma que a inserção do amor romântico ainda é "outra frente de batalha", pois esses ideais são martelados constantemente na cabeça das pessoas. "São 800 anos de propaganda de amor idealizado. Então, até romances eróticos estão dentro desse modelo de herói, do cara que decide tudo. Mas, mesmo assim, o fato de falar que o sexo pode dar prazer para a mulher é uma evolução." Nádia discorda: para ela, esses romances não ajudam a empoderar a mulher. "Há outros livros mais antigos, como A Vida Sexual de Catherine M., de Catherine Millet, em que ela é sujeita da ação, não é a mulher em função do homem. Falando de Cinquenta Tons..., a moça sempre sente prazer, e isso é fora da realidade. Essa romantização do sexo é ruim para as mulheres."

Diversidade

Além do conto de fadas nas entrelinhas, os novos romances eróticos têm em comum o fato de tratarem sempre, e apenas, de casais heterossexuais. "Cadê a literatura gay? Onde estão os livros para mulheres lésbicas, e não aqueles para homem ler e fantasiar? Tem que abrir espaço para a literatura erótica e romântica para outros tipos de casais, que não são héteros, nem monogâmicos. É uma sexualidade controlada: pode fazer o que quiser, desde que seja com um parceiro fixo. É um retorno aos valores tradicionais", critica Nádia Lapa.

Chick lit, um nicho para "mulheres modernas"

Há 16 anos, era lançado no Brasil um dos livros que praticamente definiu um novo gênero literário. O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding, com a história de uma balzaquiana confusa que deseja mudar uma série de coisas em sua vida, é um chick lit típico: ficção leve e divertida que aborda questões vividas por mulheres modernas.

Outra obra que marcou o gênero foi Melancia, de Marian Keyes, publicada no país em 2004 pela Bertrand Brasil. Na época, o publisher da Editora Valentina, Rafael Goldkorn, trabalhava na Bertrand, e foi essa "ótima experiência" com o título que o fez procurar livros semelhantes para o catálogo de sua editora. "É uma subdivisão da literatura que veio para ficar. Teve um boom, mas formou um público cativo, geralmente, mulheres na faixa dos 30 anos, com um bom nível de escolaridade", diz.

Estreante na literatura, a inglesa Eleanor Prescott acaba de lançar o seu chick lit, Par Perfeito, no Brasil. A autora, que foi assessora de comunicação da MTV por dez anos, conta no livro a história de Alice, uma profissional que trabalha em uma agência de casamentos, mas não consegue dar um jeito em sua vida pessoal.

Eleanor, que se definiu em entrevista por e-mail para a Gazeta do Povo como uma "apaixonada" pelo gênero, acha que esses romances são uma boa maneira de "relaxar." "Mas, para mim, é importante que o chick lit não seja apenas romântico, mas engraçado. Apaixonar-se é divertido", acredita ela, também fã incondicional de Bridget Jones.

Seja em romances açucarados ou nos que são também permeados pelo sexo, a escritora frisa que os leitores e leitoras não devam ler algo apenas por "obrigação." "A vida é cheia de coisas que temos de fazer – trabalho, limpeza... ler ‘o tipo de livro certo’ não deve fazer parte dessa lista. Não acho que ninguém deva ter receio de consumir qualquer tipo de livro. Todos eles são válidos, e não precisam ganhar prêmios de literatura para serem apreciados."

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