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Os pequenos textos de “Short Movies” são como fotografias. Ou pequenos “filmes que se completam com a ajuda do leitor”, como você definiu em uma entrevista. Por que lançar uma obra assim, digamos “inacabada”?

Acredito que a escrita é a primeira parte da literatura, a segunda é a leitura. De alguma uma maneira, a gente deve lançar uma espécie de estímulo, de prestigio forte, que faz com que o leitor comece alguma coisa de novo. “Short Movies” tem a ver com isso. Há um conjunto de imagens que não são contos, são pequenas descrições de fatos, gestos. Mas com uma intensidade que passa da parte física para a parte emocional. E a emoção desses pequenos filmes necessita de um tempo de intervalo, de um espaço em que o leitor aguarde que as imagens façam seu percurso e sinta a tensão que existe nas descrições verbais.

Português faz livro com descrições cinematográficas

“Short Movies”, de Gonçalo M. Tavares, tem dezenas de textinhos que podem ser lidos em meia hora – autor recomenda ao leitor: “aguardar para sentir”

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A descrição é a sua ferramenta principal neste livro. Como você exercita a observação?

A literatura, quando tenta estudar o comportamento humano, começa pela observação. O ponto de vista, o ângulo a partir do qual olhamos para alguma coisa, é essencial. A literatura não começa na escrita, mas no olhar. No desviar do olhar normal em relação aos acontecimentos. De alguma maneira, um observador é alguém que trabalha os músculos do pescoço de forma diferente. E mexendo o pescoço de maneira diferente, olhamos para outras coisas. Esse livro é muito sobre fixar o olhar em pequenos gestos. Estarmos atentos aos indícios que esses gestos representam. A forma como se abre uma garrafa. A forma como as mãos tremem ao levar um copo d´agua à boca, tudo isso pode ser o indício de uma grande tragédia. Grande parte dos episódios de “Short Movies” são sobre pequenas tragédias, pequenos movimentos, que muitas vezes anunciam qualquer coisa de muito violento.

Sobre inspiração: de onde surgiram alguns causos contados no livro? Há realidade naquela (potencial) ficção pontual?

Os episódios são puramente ficcionais. Muitas vezes refletem momentos do cotidiano. Outras vezes, remetem por outros ambientes não realistas, não de Lisboa, não da Europa. Ambientes de guerra, por exemplo. Mas são imagens, no sentido de fotografias que entram em movimento. A origem delas é difícil de relembrar. Muitas vezes partem de imagens que tenho na cabeça com imagens com as quais eu vejo. Se estiver a pensar em sapatos vermelhos de mulher, e se de repente cruzo com uma igreja, há de repente uma associação entre igreja e sapatos vermelhos e pode daí aparecer uma ficção. As situações do livro surgem desses choques da imaginação. Entre sapatos que vemos e igrejas de que nos lembramos, e vice-versa.

Infância, religiosidade e até alguma violência são alguns dos temas. Eles têm algum tipo de apelo especial para você?

Não havia pensado nisso, mas realmente há muitas crianças. A literatura tem um caráter sempre quase necessariamente perverso. No sentido literal da palavra: composta de “verso” (o outro lado, o lado escondido) e “per”, de percorrer. Ser perverso é percorrer o lado escondido. Perverso não tem a ver com que associamos normalmente, uma perversão sexual. A literatura é naturalmente perversa, não nesse sentido, mas no de percorrer o que está oculto no ser humano. Nesse aspecto, questões religiosas, da tensão, do medo, são sempre questões que se anunciam antes de existirem. Ou seja, o que me interessava nesses episódios de violência não era tanto descrever atos violentos, mas descrever pequenos filmes que são anúncios dessa tensão que gera a violência. Muitas vezes, descrevendo o medo, estamos a descrever o prefácio de um episodio violento. Era isso que me interessava neste livro.

Novamente uma obra sua apresenta excentricidade narrativa (textos lidos para serem repensados, após algum tempo, como um filme). Em “Matteo Perdeu o Emprego”, seu último romance, você misturou ensaio e ficção (ou ficcionalizou o ensaio). Você se considera um vanguardista da linguagem? Por que essa vontade de romper com algum tipo de tradição literária?

Pode parecer estranho, mas considero-me um conservador em termos de linguagem, não um vanguardista. No sentido de conservar palavras que para mim são essenciais, palavras quase bíblicas: pedra, mesa, chão, fogo, água. São palavras que me agradam muito. Nesse sentido, o que me interessa é como é que, através dessas palavras estruturais, que tem uma espécie de energia, uma aura muito forte, como conseguimos explicar, descrever algo, uma situação com uma força original.

Isso de meus livros serem híbridos e redefinir novos gêneros literários, tem muito a ver com esta questão de eu sentir que os gêneros literários são calcificados. Eles podem ser limitativos da criatividade, impor um conjunto de regras ao escritor que não são aceitáveis. Um escritor escreve com o alfabeto, o alfabeto é seu matrial, e não escreve pensando que será um conto, um romance, um poema. Eu pessoalmente não penso nisso quando estou a escrever.

A mistura entre ficção e ensaio é algo que nem noto. Para mim, escrever é naturalmente escrever com o alfabeto em movimento. O alfabeto não tem gênero literário. Todos os temas, acontecimentos e histórias podem ser abordadas de um ponto de vista mais poético, racional ou narrativo. Para mim, estes gêneros que não têm espaço na prateleira são naturais. Tento escrever investigando. A escrita é um processo de investigação. Eu tento descobrir coisas através deste processo.

Como é sua relação com o cinema?

É uma relação muito forte. Se pensarmos em Tarkovski, por exemplo. Quando vemos um filme de Tarkovski, percebemos um ritmo, uma lentidão e uma respiração que nos ensina coisas. Sou um apreciador de cinema, mas não no sentido de pensar no cinema como algo que pode-se transferir para a literatura. “Short Movies” faz o sistema contrário. É um texto que, pela natureza descritível, não faz reflexão interior, está fixa nos gestos e tenta perceber através desse gesto o que está a acontecer lá dentro, no interior das pessoas. É uma escrita em que os verbos são visuais. “Agarrar”, “puxar”, ao contrário de um verbo como “lembrar”. Eu não vejo alguém a lembrar-se, vejo alguém agarrar um copo. Nesse sentido, é quase ao contrário do que imaginar uma imagem se transformando em texto. Aqui, são textos-imagem.

Alguns textos, pelo tamanho e pelo tema, poderiam estar no Facebook, por exemplo. Houve algum tipo de pensamento nesse sentido, de se aproveitar de alguma forma dos meios de comunicação eletrônicos?

Nunca escrevi pequenos textos para publicar na internet. Não relaciono a escrita com o meio eletrônico. Quando a pessoa escreve e publica de imediato, está a passar etapas. A primeira escrita é um processo provisório que requer depois uma segunda leitura, uma terceira e uma quarta. E mais tarde uma publicação. Muito mais tarde. E depois da publicação, um tempo para existirem reações. Quando a pessoa escreve, publica logo a seguir e se tem reações, está a concentrar três momentos em um único instante. Em 10 minutos, pode-se fazer isso tudo. E parece-me excessivo, ume excesso de velocidade que não permite a ninguém, nem a quem escreve, nem a quem lê, digerir. Mas evidente que é um meio interessante. O texto curto remete para uma atenção rápida, que pode ser muito criticada, de se passar de um texto para o outro, mas por outro lado há a possibilidade de, num pequeno espaço, a pessoa introduzir qualquer estímulo perturbante. Apesar disso, as redes sociais têm esse espaço, em que pode-se obter tudo, incluindo pequenas introduções literárias. Mas não é um bom meio e nunca escrevi para esse meio.

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