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A novela das oito de Zé Celso

Zé Celso (ao centro) dirige Os Bandidos: no estágio atual, a peça tem seis horas, mas pode ficar mais curta com o tempo | Fenanda Chemale/ Divulgação PMPA
Zé Celso (ao centro) dirige Os Bandidos: no estágio atual, a peça tem seis horas, mas pode ficar mais curta com o tempo (Foto: Fenanda Chemale/ Divulgação PMPA)
Espetáculo tem propositadamente tons melodramáticos |

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Espetáculo tem propositadamente tons melodramáticos

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Entrevista com o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa

Porto Alegre - Às 20h20 da última quarta-feira (18), a primeira atriz do Teatro Oficina desceu as escadas da Usina do Gasômetro cantando. O público aglomerava-se à espera da estréia nacional da nova peça de José Celso Martinez Corrêa, Os Bandidos, no 15º Porto Alegre em Cena. Aos que resistissem até o final, superando o sono e o desconforto físico de um longo período sentados, o espetáculo se prolongaria madrugada adentro, até as 2h20 – seis horas de encenação, interrompidas por um único intervalo, quase à meia-noite.

Acompanhar o trabalho do Oficina, em plena comemoração de seus 50 anos, exige resistência. Zé Celso não está interessado em se encaixar na agenda alheia, mas em fazer do teatro uma experiência coletiva ritualística.

Seu material de trabalho neste, que é o quinto espetáculo seu a estrear em 2008, foi a obra Os Bandoleiros (1782), primeira peça escrita pelo dramaturgo e filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805), que o diretor brasileiro recria em versos – sob influência declarada de Cacilda Becker e seu gosto pela palavra poética. A seqüência de acontecimentos da briga entre dois irmãos, herdeiros de um conglomerado de comunicação, é mantida como no texto original, explorando as referências que já haviam na peça (Ariadne, a mulher disputada pelos dois irmãos, chama-se Ofélia, trazendo à cena a tradição de Hamlet, por exemplo) e reinventando-a a todo instante com adaptações à realidade brasileira contemporânea.

Zé Celso faz o que chama de sua "primeira novela das oito". Com sensualidade e humor, mistura referências eruditas e populares. A certa altura, o herói infantil dos desenhos animados He-Man é contratado por um dos irmãos para passar-se por um herói latino-americano. Quando retorna ao palco, é como Che Guevara.

Os irmãos também ganham novos nomes: Cosme (ou Kosmos) e Damião (ou Damian) e a empresa do pai deles é identificada como Pro World Corporation SS, com uma logomarca em que as duas iniciais remetem, ao mesmo tempo, à polícia política nazista e aos cifrões. É um ataque nada velado ao Grupo Silvio Santos, com o qual Zé Celso trava uma briga antiga pelo terreno vizinho ao Teatro Oficina, de propriedade do comunicador.

O projeto de construir um shopping center no local já foi abandonado, mas o embate permanece por causa das intenções diversas para a área: o grupo de comunicação planeja erguer um conjunto residencial, enquanto Zé Celso sonha com seu teatro-estádio, que devolva à encenação teatral seu poder de atração sobre multidões. Silvio Santos surge nos telões e televisões espalhados ao longo da passarela que serve de cenário.

Os Bandidos conquistou a atenção dos espectadores que superlotaram a Usina do Gasômetro durante toda a primeira parte. Depois do intervalo, o público retornou reduzido e a ação perdeu ritmo. Ainda assim, mais de dois terços das arquibancadas e cadeiras permaneceram ocupadas até o final.

A distinção entre os assentos chamava a atenção: em lugar privilegiado, mais próximo a um palco no qual desembocava a passarela, havia fileiras de cadeiras vermelhas estofadas, para atender aos espectadores que deixariam de ir a uma peça do Oficina por causa do desconforto. Faz parte do plano de Zé Celso para atrair também as classes mais abonadas ao teatro.

No dia seguinte à estréia de Os Bandidos no festival Porto Alegre em Cena, meia-hora antes do horário marcado para o início de sua segunda apresentação, o diretor encontrou tempo para atender a um pequeno grupo de jornalistas no saguão da Usina do Gasômetro e conversar sobre o trabalho atual (que segue para São Paulo no próximo dia 26) e os 50 anos do Teatro Oficina.

Gazeta do Povo – Quais foram as suas impressões da estréia?

José Celso – A peça tinha sido feita em Mannheim (Alemanha), mas foi um feto. Nasceu realmente depois de 40 dias de ensaio, é um bebezinho que a gente ainda não conhece bem. Com o decorrer do tempo, o bebê vai crescer e diminuir de tamanho, ganhar ritmo. Os atores ainda estão muito assustados com tudo. A peça nasceu na véspera mesmo. Ontem (na estréia), muita gente foi embora ou porque não gostou ou por causa do frio, do cansaço ou porque ficou escandalizada. Terminou triunfalmente, o que significa que esse público mais quente vai fazer a gente conquistar todos os públicos. Eu não conhecia Schiller, tive que fazer uma adaptação às pressas. Estamos exaustos. A gente geralmente viaja com peças que já domina. Essa foi uma estréia aqui, ela nos domina.

Ao longo da história do Teatro Oficina, a companhia passou por transformações muito contundentes. O Oficina de hoje abarca todas as fases anteriores?

Ele é totalmente antropófago, abarca todas as fases não só do Oficina, mas também do Brasil. No final, o personagem do Damian fala: "Eu estou aqui me entregando com os bandidos". A gente se entrega mesmo, inclusive colocando o Grupo Silvio Santos como personagem. Eu só acredito no artista que refaz a obra através da sua subjetividade. Muita gente acha que isso é narcisismo, mas eu acho que é o oposto, é uma humildade você considerar o eu parte do cosmos e o cosmos parte do eu. Nelson Rodrigues era maravilhoso quando falava da idiotice da objetividade. O artista tem que estar totalmente em sua obra. Então, os meus 50 anos estão aí, as heranças todas do Oficina estão aí, é inevitável. Eu me orgulho de cada minuto vivido nesses 50 anos, porque foram minutos de intenso ardor. Aliás, não dizemos mais "merda", nós dizemos ardor. É o ardor que nos move nesses 50 anos.

E o que o moveu a criar a partir da obra de Schiller?

Eu nunca escolhi nenhuma peça nestes 50 anos. Foi o alemão (Frank) Castorf, o diretor do Festival de Recklinghausen, que divulgou à imprensa que eu iria dirigir Os Bandidos. Daí o pessoal de Mannheim veio me convidar para fazer em um mês e eu aceitei. Fizemos no próprio teatro onde a peça do Schiller estreou no século 18.

No blog do Teatro Oficina, você escreve que quer atrair novamente o público de diversas classes e faz referência a uma distinção das cadeiras da platéia. Como é essa idéia?

Nós estamos tentando fazer uma área VIP no Oficina para poder cobrar os ingressos que os teatros cobram, porque o nosso teatro não tem o conforto que os outros têm. A burguesia não vai, a própria revista Veja recomenda que não vá porque o teatro é muito desconfortável e é mesmo. E a (arquiteta) Lina (Bo Bardi) fez de propósito, achava que o público tinha que ficar ereto, participando. Mas, enfim, a burguesia não gosta, quer conforto. No tempo do Schiller não tinha cinema, televisão, internet, as peças eram popularérrimas, iam todas as classes sociais. Eu acho que o destino do teatro é ser feito para todos e tem uma busca disso na idéia do teatro-estádio.

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