Desesperados fala sobre o casamento moribundo de Sophie e Otto Bentwood. Eles vivem no bairro nova-iorquino do Brooklyn. É o final dos anos 60 e, da janela de casa, pode-se testemunhar o esfacelamento da sociedade ao redor. O bêbado que vomita na calçada, pedras atiradas contra janelas, residências invadidas e depredadas.
O suspense que conduz a narrativa é criado a partir de uma situação banal. (Mais tarde, fica claro que é também simbólica). Sob as críticas do marido, Sophie decide alimentar um gato de rua que aparece na porta de casa. Ela coloca leite numa tigela, que o bichano consome com gosto, e passa a acariciá-lo ao final da refeição. Até que o gato avança e morde a sua mão, a boquinha como um "círculo de arame farpado".
Daqui em diante, o ferimento causado pela mordida vai inchar, sangrar e latejar. Primeiro, Sophie tentará negar a gravidade do machucado talvez como nega a crise de seu casamento , embora desconfie que possa ter contraído raiva. Se essa suspeita estiver certa, ela terá de se submeter a um tratamento doloroso de várias injeções na barriga. Antes, é preciso pegar o gato e levá-lo para um exame.
A história se passa em três dias, nos quais Sophie procura alternativas para aplacar o desconforto que sente não apenas na mão, mas na sua vida tenta comprar utensílios domésticos ou reavivar lembranças de seu ex-amante. Por vezes, dá sinais de desejar o pior. Seria melhor estar contaminada pela raiva do animal do que tentar ignorar o risco, ou não sentir nada.
Otto, o marido, é um sujeito metódico que persuadiu a mulher a não adotar filhos quando já era tarde demais para ela ter um.
Além de se debater com a crise nos negócios, ele se sente violentado pela decadência que identifica nas ruas, ou relacionada àqueles que não têm a mesma sorte que sua. Marido desinteressado, nunca sequer desconfiou da aventura extraconjugal de Sophie com um de seus clientes.
O casal está na casa dos 40 anos e tem um círculo social restrito. Tudo indica que eles estão simplesmente enfarados um do outro.
Revival
Publicado pela primeira vez em 1970, o romance de Paula Fox foi redescoberto pelo escritor Jonathan Franzen em 1991, enquanto trabalhava em Yaddo, uma colônia para escritores em Nova Iorque. A indicação partiu de uma colega, Sigrid Nuñez.
Franzen leu uma vez e foi assaltado pela narrativa. Ao longo da década, releu diversas vezes, indicou para várias pessoas, trabalhou com o livro em um curso de Redação Criativa e, por fim, escreveu um ensaio sobre o romance americano em que defendeu Desesperados como uma obra-prima, superior a qualquer outra coisa produzida pelos contemporâneos de Paula Fox. E isso não é pouco, se se considerar que se referia ao Nobel de Literatura Saul Bellow (19152005), a Philip Roth e a John Updike.
Mesmo antes de publicar As Correções, que o transformaria em um dos romancistas mais importantes dos EUA, Franzen conseguiu chamar atenção para a obra de Fox. Desesperados estava há quase dez anos fora de catálogo quando foi reeditado em 1999 com uma apresentação do escritor, reproduzida na tradução brasileira pela Companhia das Letras.
"Não existe praticamente nenhuma palavra estranha ou arbitrária a ser encontrada no livro. Rigor e densidade temática de tal magnitude não acontecem por acaso, e mesmo assim é quase impossível para um escritor obter isso e ao mesmo tempo relaxar o suficiente para permitir que os personagens ganhem vida; no entanto, aqui está o romance, pairando acima de todas as outras obras de ficção realista norte-americana desde a Segunda Guerra Mundial", escreve Franzen.
Uma experiência que pode ser interessante é ler a apresentação de Franzen (também) depois de encarar o romance. O escritor relata as descobertas que fez e compreensões que teve em cada uma das seis ou sete leituras do livro, ressaltando a importância de personagens secundários e destrinchando frases, palavras e até os nomes escolhidos pela autora. Sua interpretação é tão apaixonada e bem construída que fica difícil não ser influenciado por ela.
Numa simplificação exagerada, o realismo na literatura americana retrata personagens comuns em situações cotidianas. Segue a lógica da "vida como ela é". Paula Fox, ao menos segundo Franzen, investe no chamado "realismo trágico", capaz de converter os otimistas mais fervorosos.
A crueza com que a escritora aborda temas atuais, se é que um dia a incomunicabilidade entre as pessoas e os percalços da relação a dois não foram atuais, seria uma das razões para o interesse da nova geração de escritores, que nasceu imune ao típico otimismo pró-ativo do sonho americano.
O livro virou filme em 1971 pelo diretor obscuro Frank D. Gilroy e com Shirley McLaine no papel de Sophie. A produção recebeu os prêmios de melhor atriz (McLaine) e roteiro no Festival de Berlim. É homônima do livro (no original em inglês): Desperate Characters, ou Personagens Desesperados, em referência a Henry David Thoreau (18171962), que escreveu sobre "a calada desesperação da vida". Talvez a frase que melhor define o romance de Fox.
Serviço: Desesperados, de Paula Fox (Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 192 págs., R$ 35,50).



