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Literatura

A talentosa Miss Highsmith

Se não publicasse livros, a grande escritora seria uma assassina, afirma uma nova biografia

Jovem e bela, Patricia Highsmith tinha uma natureza independente | Divulgação
Jovem e bela, Patricia Highsmith tinha uma natureza independente (Foto: Divulgação)
Confira as versões cinematográficas de Tom Ripley |

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Confira as versões cinematográficas de Tom Ripley

"Assassinato é uma coisa muito séria. Eu não invento nada. Leio os jornais, que são antologias de coisas cruéis. Não demora e as pessoas darão mais crédito à ficção do que à realidade. As pessoas são malucas." Longe dos mordomos e detetives cerebrais de Conan Doyle e Agatha Christie; longe dos tiras e durões de Chandler, Hammett & Cia., Patricia Highsmith descreve crimes que nascem de conflitos ocultos do cidadão comum e afirma que a compulsão de matar reside no coração até do mais normal dos homens. Ela sabe o que diz, porque esta compulsão sempre residiu no seu próprio coração, segundo Joan Schen­­kar, que acaba de lançar uma nova biografia da famosa autora de ro­­mances policiais, The Talented Miss Highsmith/ The Secret Life and the Serious Art of Patricia Highsmith.

Não é a primeira biografia de Patrícia Highsmith, mas Joan Schenkar foi mais fundo. Durante oito anos entrevistou pessoas ligadas à escritora e pesquisou a vasta documentação de textos e iconografia sobre a autora, espalhadas em vários arquivos pelo mundo, principalmente nos Swiss Literary Archives de Berna, na Suíça. Encarou, ainda, o desafio de escarafunchar os diários e cadernos que Patrícia manteve ao longo da vida e que são verdadeiros red herrings – pistas falsas, na gíria do romance policial.

A própria Pat escrevia, aos 19 anos: "Nenhum escritor jamais trairia sua vida secreta, seria como se mostrar nu em público." Mas Patrícia nunca teve medo de se desnudar, em fotos da juventude e em seus livros. Embora publicado com o pseudônimo de Claire Morgan, seu segundo romance, The Price of the Salt, retratava um caso de amor entre duas mulheres. Já em 1942, aos 21 anos, ela fazia sua profissão-de-fé amorosa: "Pode existir a garota à espera, o beijo no escuro, a palavra de promessa sussurrada, o sol no parque ou os cisnes no lago, um emprego para mim, um emprego para ele, a bandeira drapejando audaz e livre para sempre, e repetidamente o belo rapaz encontrando a adorável garota e todo o maravilhoso amor perseguido e capturado. Tudo para o melhor... mas eu não vejo a coisa assim. Nunca verei. Simplesmente não vejo a coisa assim."

Ao longo da vida, Patrícia teve uma série de relacionamentos com mulheres, raramente duradouros. Schenkar oferece uma explicação ousada logo no início: "Patrícia e sua mãe, Mary Coates Highsmith, foram a mais profunda experiência de amor uma para a outra. Uma rica receita para o inferno na terra para ambas. ‘Eu adorava minha mãe e não podia ver nada de errado nela até os 17 anos’, disse Pat aos 46. Esta versão de amor só seria igualada pela violenta rejeição recíproca de uma pela outra."

Cheiro de terebintina

Patrícia nasceu em Fort Worth, no Texas, em 19 de janeiro de 1921, meses depois da separação física e nove dias depois do divórcio legal da mãe, Mary Coates Plangman, de 25 anos, com Jay Bernard Plangman, 37 anos.

Grávida, o marido a pressionara a abortar. Os dois queriam vencer no competitivo mundo da arte comercial em Nova York e um bebê seria um estorvo. Mary, por sugestão de uma amiga, ingeriu terebintina, mas não funcionou. Decidiu então abortar o casamento e ter sua filha em paz. Tempos depois, Mary gostava de contar a história a amigas e amantes da filha, começando com a introdução irônica: "É estranho que você goste do cheiro de terebintina, Pat, porque..."

Três semanas depois de Patricia nascer, sua mãe partiu para Chicago em busca de um emprego. A criança foi criada pela avó, Willie Mae Stewart Coast. Patrícia tinha três anos e meio quando conheceu o novo marido da mãe, Stanley Highsmith, que lhe daria o sobrenome. Segundo Joan Schenkar, "aos 8 anos, Patrícia queria matar o padrasto. Patrícia nasceu para matar, tinha a mente de um gênio do crime."

Em 1942, aos 21 anos, Pat escreveu em seus cadernos: "Tenho um grande desejo de escrever algo sobre uma jovem que coloca sua mãe (guardiã, tia) na cama, concordando com todas as suas propostas... gentilmente servindo-lhe um copo de leite quente, prometendo nunca mais falar com seu namorado, e então, com um sorriso, a garota enfia a tesoura no peito da mãe..."

Aos 21 anos Pat vai para a universidade em Nova York e começa a frequentar os bares boêmios do Village. Edita um jornal no Barnard College – um meio de conquistar a atenção das colegas – e começa a planejar sua carreira de escritora. Segundo Joan Schenkar, "em quase tudo o que ela escreveu, as boas intenções se corrompem natural e automaticamente, a culpa na maioria das vezes aflige os inocentes e não os culpados, e a vida é uma armadilha sufocante da qual até mesmo um artista do escapismo como o talentoso Sr. Ripley não consegue encontrar uma saída graciosa".

Em 15 de março de 1950 seu primeiro romance é publicado, Strangers on a Train. Alfred Hitchcock, incógnito, compra a preço de banana os direitos e lança o filme, Pacto Sinistro, em 1951. Pat rejeita o convite de conhecer Hitchcock e assistir às filmagens, está empenhada em novos projetos. Em 1954, lança The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Ripley), que, traduzido para o francês, lhe dá o Grand Prix de la Littérature Policière.

Em 1960, René Clément faz a versão para o cinema, O Sol por Testemunha, que teria um remake por Anthony Minghella em 1999, O Talentoso Ripley.

Tom Ripley se tornará um caso literário: alter ego da autora, um talento do crime, será protagonista de outros quatro livros, entre 1970 e 1992. O terceiro, Ripley’s Game, é transposto ao cinema por Wim Wenders em O Amigo Americano – Liliana Cavani fez um remake em 2002.

O personagem de Thomas Phelps Ripley foi sucessivamente encarnado por atores como Alain Delon, Dennis Hopper, Matt Damon, John Malkovich e Barry Pepper. Segundo o crítico Frank Rich, "Ripley é um indiscutível descendente de Gatsby, aquele ‘jovem sem um tostão e sem um passado’ que não se detém diante de nada."

Em seus 74 anos de vida, Patrícia publica 22 romances, nove livros de contos, um livro infantil e um livro teórico, Plotting and Writing Suspense Fiction. Na vida real, seus romances e relacionamentos – sempre com mulheres – se sucedem no mesmo ritmo da publicação dos livros e das mudanças de domicílio. Positano, Roma, Paris, Londres, Aldeburgh, Samoix-sur-Seine, Montmachoux, Montcourt, na França, Aurigeno e Tegna, na Suíça, são alguns de seus endereços mais estáveis. Ela morre na Suíça, num hospital de Locarno, de anemia e câncer, em 4 de fevereiro de 1995 – sua mãe tinha morrido três anos antes, aos 95. O reconhecimento de sua obra sempre foi maior fora do seu país natal, principalmente na Europa. Segundo o inglês Graham Greene, Patrícia criou "um mundo claustrofóbico e irreal no qual entramos sempre com uma sensação de risco pessoal".

Joan Schenkar termina sua biografia à maneira de réquiem: "Quando Pat tinha 26 anos e ainda era inflamada por cem novas idéias cada dia, ainda atraindo amantes como um ímã, ainda escrevendo para histórias em quadrinhos, ainda se divertindo como nunca em Manhattan, onde o Sonho Americano ainda estava vibrantemente vivo, ela pegou sua caneta nas primeiras horas do último dia de dezembro de 1947 e condensou suas esperanças para o ano vindouro numa única frase. Ela chamou este pequeno desafio – pois era exatamente isso, um punho jovem erguido no rosto da Fortuna – ‘Meu Brinde de Ano Novo’." Podia muito bem tê-lo chamado de ‘Meu Epitáfio’: ‘2h30 da manhã. Meu Brinde de Ano Novo: para todos os demônios, luxúrias, paixões, cobiças, invejas, amores, ódios, estranhos desejos, inimigos fantasmas e reais, o exército de memórias contra os quais combato – que possam nunca me dar paz.’

E eles nunca lhe deram paz."

Serviço: The Talented Miss Highsmith/ The Secret Life and the Serious Art of Patricia Highsmith. St. Martin’s Press, 684 páginas. US$ 40.

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