
No bairro do Bom Retiro, no centro de São Paulo, há casarões vazios e mal-assombrados, sinagogas abandonadas, lanchonetes ordinárias e fábricas clandestinas.
A tradicional vizinhança judia, formada no inicio do século 20, é também hoje a mais babélica da metrópole, após receber outras duas correntes migratórias: desde algumas décadas, vieram os coreanos. Recentemente, milhares de bolivianos.
Este lugar limítrofe, encruzilhada de novas e velhas tradições, mais do que um cenário, é parte da linguagem da narrativa de A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves, novo romance de Joca Reiners Terron.
Isto porque este caldo, engrossado pela confusão étnica e temporal, tem a densidade semelhante a da ficção de Terron. O autor matogrossense, estabelecido em São Paulo, mistura gêneros e os tempos das histórias ambiciosamente e com um lirismo nervoso, próprio dos desterrados, dos deslocados no mundo.
Com este barro, Terron moldou o texto de seu nono livro, o ponto alto, até agora, de sua já sólida trajetória de escritor.
A trama hábil e minuciosamente costurada mistura terror psicológico com brutalização suprema. Realismo insone com a névoa da memória. Edgar Allan Poe com Nastassja Kinski.
Em uma narrativa com forma de inquérito policial, um insone escrivão de polícia sintetiza a matéria da memória dos depoimentos dos díspares personagens envolvidos em uma série de crimes.
Ele mesmo (o narrador) é um deles, filho de um casamento maldito para a comunidade judia de seu pai, agora ancião e demente. Há ainda uma enfermeira de pacientes terminais que atende uma criança muito peculiar. E também toda uma rede de personagens da fauna local, como velhos agiotas e um taxista fã de música antiga que treina cães assassinos.
O livro todo oscila entre a noite e o dia, o sono e a vigília período em que a memória pode ser traiçoeira e mortal como um felino das neves russas.
"Esse tema percorre todos os meus livros, sou intrigado pela capacidade humana de deformar a realidade para superar a dor", explica Terron, em entrevista por e-mail à Gazeta do Povo.
Em tempos de emissão exagerada, em que toneladas de livros grossos com pouco a dizer são lançados, Terron apresenta um texto enxuto em que combina suspense que pega o leitor pelo estômago com seu peculiar humor seco e cínico para se ocupar de temas como o tempo, a morte e a condição animal da existência humana.
"Sempre ambicionei escrever uma novela perfeita, assim como são Estrela Distante, de Roberto Bolaño, ou Viver é Prejudicial à Saúde, de Jamil Snege Se consegui, só o leitor pode dizer. Mas o escritor deve ser dotado de ambição. Sem isso, melhor nem sentar para escrever", revela.



