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Depressão

A um passo do abismo

O “mal do século” é uma doença que não pode ser confundida com a tristeza, que faz parte da vida, e é uma palavra que perdeu o sentido pelo uso indiscriminado

 | Ricardo Humberto
(Foto: Ricardo Humberto)

Uma metáfora para tentar explicar a depressão, usada por Andrew Solomon em O Demônio do Meio-Dia, é difícil de esquecer. A certa altura do livro – uma obra que diz tudo o que um leigo precisa saber sobre depressão –, ele discorda dos deprimidos que definem a doença como o "cair da beira do abismo" (talvez em inglês, a expressão faça mais sentido do que em português).

Solomon lembra a viagem que fez com amigos para ver as cataratas de Vitória, no Zimbábue, queda d’água com cerca de cem metros de altura. Na sessão de fotos, começaram a disputar para ver quem chegava mais perto do penhasco. A amiga que fotografava o escritor pediu para ele ir um pouquinho para o lado. Quando se deu conta, estava a um palmo do abismo e ficou paralisado.

A amiga entendeu o que acontecia e estendeu o braço para agarrá-lo, mas ele não conseguia se mexer. Para se afastar da beira, ele teve de se deitar no chão e se arrastar.

Para Solomon, sofrer de depressão é estar sempre na beira do abismo, imobilizado, sem capacidade para fazer coisa alguma.

Ao tratar do tema, a fim de entender por que a depressão é considerada "o mal do século" e aparece muito ligada ao modo de vida atual, a Gazeta do Povo conversou com psicanalistas e psiquiatras. O que ficou claro. logo nos primeiros contatos com entrevistados. é a necessidade de se diferenciar depressão clínica – termo usado por profissionais – e tristeza.

O psicanalista Fabio Thá, doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), diz que a palavra depressão "tem sido usada tão indiscriminadamente que perdeu o sentido" e que depressão clínica (a expressão adequada) "não é tristeza, luto, sofrimento".

Consultor em Psiquiatria na cidade inglesa de Hull, o médico paranaense Renato Merolli também chama a atenção para a diferença entre "estar deprimido" e "sofrer de uma doença mental chamada depressão".

"Ficar deprimido todo mundo fica em algum momento da vida, é um dos sentimentos inerentes do ser humano e uma reação natural a certos eventos da vida, como perdas e outros infortúnios", diz Merolli. "Sofrer de depressão é algo muito diferente. É o estar triste e deprimido de uma maneira patológica por semanas ou meses a fio e muitas vezes sem motivo aparente."

Os psiquiatras consultados pela reportagem destacam ainda os fatores biológicos e a predisposição de cada um. "A genética tem um papel importante na gênese da depressão", diz o psiquiatra Raul Carneiro Gomes Junior.

Tempo e espaço

O psicanalista e escritor Carlos Eduardo Leal, autor do romance A Última Palavra (Rocco), cita a causa global da depressão: redução do tempo e do espaço (físico-urbano e psicológico).

É até comum procurar explicar a depressão como um desequilíbrio químico no cérebro. Algo que pode ser resolvido com medicamentos e afeta uma ou outra pessoa.

Solomon, que escreveu sobre sua própria experiência na beira no abismo, descarta essa lógica, argumentando que a frase "Estou deprimido, mas é só químico" equivale a "Sou assassino, mas é só químico" ou "Sou inteligente, mas é só químico". "Tudo na pessoa é só química, caso se queira pensar nesses termos", diz. Mais adiante, consegue ser mais explícito: "A depressão não é a consequência de um nível reduzido de nada que possamos medir".

Hoje, a busca pela felicidade deixou de ser uma aspiração para se tornar uma tirania (o psicanalista Marcio Robert escreve sobre o assunto na página 2). Vive-se sob o esquema de tolerância zero para a tristeza, que é muito diferente da depressão clínica. Quem se sente deprimido, procura o médico em busca de remédios – outro ponto controverso da discussão – e quer escapar de um dos elementos fundamentais da vida.

Névoa

"Preferiria viver para sempre no nevoeiro do sofrimento a desistir da capacidade de sentir dor. Mas a dor não é depressão aguda; amamos e somos amados mesmo sofrendo de uma grande dor, e estamos vivos quando a experimentamos. É a característica de morto-vivo provocada pela depressão que venho tentando eliminar da minha vida." De novo, Solomon. Na verdade, o texto de O Demônio do Meio-Dia é tão preciso e lúcido que não importa quantas citações apareçam na matéria, as sacadas do livro não acabam.

"A psicanálise nos permite perceber que há uma parcela de infelicidade a ser suportada em toda felicidade alcançada. O problema não é, portanto, a busca pela felicidade, mas um suposto imperativo desta que, ao anular o sofrimento, anula simultaneamente a felicidade", explica a psicanalista Nadja Nara Pinheiro, doutora em Psicologia Clínica e professora da UFPR.

Conquista incompleta

Fabio Thá argumenta que a felicidade não é uma obrigação que a pessoa se impõe a si mesma, mas sim ao outro, seja ele o estado, as instituições ou um parceiro. "Por essa razão a felicidade se tornou um direito que o outro é obrigado a me providenciar", diz. Porém, a vida é feita de momentos felizes (e tristes) e não de uma felicidade contínua. "Conservar a paz de espírito mesmo na tristeza e na dor não é um direito, mas uma conquista. Uma árdua, longa e sempre incompleta conquista. Não temos outro recurso na vida senão aprender a sofrer e a conviver com o sofrimento", afirma Thá.

Evitar a dor é tentar escapar de sua própria humanidade.

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