
"Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim, toma. Toma o ministro do estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado."
Pode parecer uma crítica atual. Ou uma crítica a outras repúblicas que vivemos, ou até ao Império. Mas estas palavras foram pronunciadas há 367 anos, num púlpito da Bahia, pelo padre Antônio Vieira, um dos homens mais notáveis da sua época e um dos maiores estilistas da língua o que o torna duplamente atual nestes dias de conscientização lusófona.
Missionário e catequista, escritor e pregador, estadista e diplomata, político e estrategista, Vieira (1608-1697) ocupou com raro brilho o século 17 quase inteiro. Nascido em Lisboa, foi aos 6 anos para a Bahia com o pai, funcionário da administração colonial. Aos 15 anos entrou para a Companhia de Jesus, sendo ordenado aos 27 anos, quando iniciou a carreira de orador sacro. Só aos 33 anos Vieira regressaria a Lisboa, onde se tornou a sensação dos púlpitos, inspirando a admiração de d. João IV, que o tomou sob sua proteção. Aos 45 anos, voltou ao Brasil, em trabalho missionário no Maranhão, Pará, Amazonas e Ceará, defendendo o indígena contra a cobiça dos colonos. De novo em Portugal, aos 53 anos, perseguido pela Inquisição após a morte do rei, foi encarcerado durante 813 dias num minúsculo cubículo sem luz. Salvo dos inquisidores pelo Papa Clemente X, viveu dias de glória em Roma como pregador do pontífice e da rainha Cristina da Suécia. Aos 73 anos, regressou à Bahia, onde preparou doze tomos dos seus Sermões, antes de morrer, aos 89 anos.
Uma estatística importante: em seus 89 anos, Vieira passou 52 no Brasil ou seja, quase dois terços de sua vida. Marcado pela "fala brasileira", efetuou uma admirável fusão do idioma luso com o colonial, enriquecendo a língua portuguesa e ampliando seus horizontes. Do alto de sua vasta experiência de vida, Vieira opinou sobre todo tipo de questões, com impressionante atualidade. Confiram:
Ladrões
"... os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam."
Verdade e mentira
"A este evangelho de domingo quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos prego verdades e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdade vos diria: e segundo as notícias que vou tendo desta terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade. (...) M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar e sobretudo M: mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com o pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente."
Escravidão
"Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias, salvando com tiros e de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato: entra uma nau de Angola e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. Os israelitas atravessaram o Mar Vermelho e passaram da África à Ásia fugindo do cativeiro; estes atravessam o Oceano na sua maior largura e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos. Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras, do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios: naquela o que geram os pais, e o que criam a seus peitos as mães, é o que vende, e se compra. Oh trato desumano em que a mercancia são os homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos são das próprias.
("Sermão do Rosário", de 1633, proferido na Bahia. Reparem na riqueza de imagens da descrição inicial, quase cinematográfica.]
Índios fora do seu habitat
"Esta é uma das causas que têm destruído infinidade de índios neste estado: tirarem-nos de suas terras e trazerem-nos às nossas, sem lhes terem prevenidos os mantimentos de que se hão de sustentar; mas fazem-no assim os que governam, porque se houveram de fazer as prevenções necessárias, há de se gastar muito tempo nelas, e entretanto passam-se os seus três anos, e eles antes querem cinqüenta índios que os sirvam, ainda que morram quinhentos, do que muitos mil vivos e conservados, de que eles se não hajam de aproveitar."
(Carta de Vieira ao rei d. João IV relatando sua primeira viagem ao Tocantins.)
A guerra
"É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, dos sangues, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema; nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a sua honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro."
Amor e ódio
"Se os olhos vêem com amor, o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro; se com amor, o demônio é formoso; se com ódio, o anjo é feio; se com amor, o pigmeu é gigante; se com ódio, o gigante é pigmeu; se com amor, o que não é tem ser; se com ódio, o que tem ser e é bem que seja, não é e nem será jamais."
Primeiro e segundo amor
"Questão é curiosa nesta filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo? Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogênito do coração, o morgado dos afetos, a flor do desejo, e as primícias da vontade. Contudo eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre; o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor..."
A morte
"A morte tem duas portas. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh que transe tão apertado! Oh que passo tão estreito! Oh que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem; mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra." ("Sermão da Quarta-feira de Cinza", 1672. Reparem na incrível semelhança com o solilóquio de Hamlet, de Shakespeare, publicado apenas 71 anos antes.)
Anatomia da esperança
"É a esperança um composto de desejo e confiança: com a vontade deseja, e com o entendimento confia; se desejara sem confiança de alcançar, seria somente desejo; mas como deseja e confia juntamente, por isso é esperança."
Assim foi o genial Vieira, chamado por d. João IV "o primeiro homem do mundo". Um espírito de tal largueza e acuidade considerado em sua época um verdadeiro "vidente" que não poupou nem mesmo a si na sua visão crítica das coisas:
"Não há maior comédia que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir, admirar-me ou dar graças a Deus ou zombar do mundo, não tenho mais que olhar para mim."



