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Imprensa

Argentina de contornos divididos

A polarização entre o governo de Cristina Kirchner e as empresas de comunicação atrapalha o funcionamento da democracia argentina. O G Ideias entrevistou analistas para tratar dos reflexos que o abalo nesse pilar institucional traz ao país vizinho

A presidente Cristina segura o contorno do rosto de Evita Perón (1919 – 1952), cuja  memória evoca com frequência | AFP
A presidente Cristina segura o contorno do rosto de Evita Perón (1919 – 1952), cuja memória evoca com frequência (Foto: AFP)

Quando a presidente Dilma Roussef compareceu à comemoração dos 90 anos do jornal Folha de S. Paulo, em fevereiro do ano passado, correu entre a imprensa argentina o comentário de que uma situação como aquela seria impossível por lá. Afinal, argumentou-se, o periódico brasileiro está entre os que mais denunciam os desmandos de Brasília.

A reação mostra a que ponto chegou a tensão entre mandatários e imprensa no país vizinho. Desde o governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e com um endurecimento no da viúva Cristina, os desacordos só crescem, de forma a prejudicar a atuação tanto do governo como dos jornais. A opinião é do diretor executivo do Fórum de Jornalismo Argentino, Andrés D’Alessandro. "Quando há polarização, uma das principais perdas vai para a qualidade do jornalismo como análise da realidade", disse.

De um lado, críticos do governo afirmam estar sendo levada a cabo uma suposta ordem de Néstor para colocar o principal periódico do país, o Clarín, "de joelhos", levando a rodo o concorrente La Nación. De outro, aliados da Presidência defendem o intervencionismo oficial, que classificam como uma democratização dos meios de comunicação.

Em um continente em que as limitações à liberdade de imprensa incluem até o assassinato de jornalistas – no México, na Colômbia e na Guatemala, por exemplo, o índice de homicídios desses profissionais é muito alto –, pode parecer exagero apontar cerceamento à atividade na Argentina. D’Alessandro alerta: "Aqui o que acontece são limitações que entraram na agenda oficial". Para citar o exemplo mais recente, o governo Kirchner passou a controlar a venda de papel-jornal, classificado como "estratégico" por uma lei sancionada em dezembro passado. "A guerra de Cristina contra os dois principais jornais da Argentina tornou-se aberta e pública", declarou o copresidente da Comissão de Liberdade da Sociedade Interamericana de Imprensa, Claudio Paolillo, ao jornal O Estado de S. Paulo nesta semana.

Ferramentas

Uma ferramenta comum nas restrições ao trabalho da imprensa é a distribuição desigual de publicidade oficial, um dinheiro que acaba apoiando periódicos favoráveis ao governo. O cerco passa também por entraves impostos à atividade jornalística. No primeiro ano do governo de Néstor Kirchner, o executivo argentino emitiu decreto de "acesso à informação" – medida considerada positiva, mas que não é cumprida. E isso se traduz na dificuldade de acesso a um documento oficial ou de se conseguir entrevistas.

Em 2009, a Lei de Audiovisual aprovada pelo Senado impediu que canais privados de tevê cubram mais que 35% da população argentina, e que acumulem um canal aberto e outro pago. As licenças de tevê e rádio, que valiam 20 anos, passaram a terminar após 10 anos, com exigência de renovação a cada dois.

Entre outras medidas consideradas ataques à imprensa, no fim do ano passado a base aliada de Cristina, que tem maioria no Congresso, tornou "bem de interesse público" a produção, distribuição e comercialização de papel-jornal, insumo fabricado no país pela Papel Prensa, controlada por Clarín, La Nación e pelo Estado – que agora poderá assumir seu controle.

Malefício

Em meio a isso quem mais perde é o jornalismo de qualidade e, como consequência, o próprio funcionamento do jogo democrático, em que a imprensa exerce papel crucial de cobrar, investigar e denunciar abusos do poder público. Além de tornar mais difícil a busca pela objetividade, o embate acabou se tornando um supertema, relegando outros às margens do noticiário.

"As pessoas tomam o assunto tão pessoalmente que fica impossível debater. Não se debate realmente a liberdade de expressão", queixa-se Soledad Vallejos, que trabalha para um dos jornais considerados pró-governo, o Pagina 12.

"Quase todos os temas dos últimos cinco anos entraram nessa polarização, desde o futebol até a mineração", aponta D’Alessandro. "Todas as posturas vão se tensionando cada vez mais, o que corta as pontes de diálogo, e isso torna o retorno à normalidade muito mais difícil."

Regulação

As medidas de regulação do setor de comunicações não são ruins em si, na opinião do professor de jornalismo da USP Eugênio Bucci. "Vários países da América do Sul, inclusive o Brasil, precisam de regulação democrática para o setor de radiodifusão e comunicação eletrônica, mas isso nunca pode estar no bojo de um discurso que pode ser entendido pela sociedade como perseguição."

Para ser realmente uma ferramenta da democracia, a regulação teria que ser impessoal, sem distinções por veículos. "É preciso ver a motivação com que o governo está agindo – é para democratizar o mercado ou punir um veículo que ousou fazer críticas?"

Para Bucci, no Brasil o calcanhar de Aquiles é a distribuição de concessões de tevê. "O maior problema aqui é separar ‘igreja de emissora de televisão’. É a maior distorção que está acontecendo, e não tem lei para isso." Outro ponto que ergue sobrancelhas no Brasil são perigosos casos de censura, como aconteceu em 2009 quando O Estado de S. Paulo publicou revelações sobre a operação Boi Barrica – que investigava tráfico de influências de Fernando Sarney, filho do presidente do Senado e ex-presidente, José Sarney. Impedido pela Justiça de publicar novas reportagens, o jornal foi ameaçado com multas de R$ 150 mil para cada "ato de violação".

Entendida como um dos pilares da democracia, a liberdade de expressão e o direito de crítica "não existem apenas para quem tem uma opinião razoável", lembra Bucci. Há que se esperar que por aqui a promessa de Dilma feita durante a comemoração da Folha de S. Paulo se mantenha: "Reitero sempre que o Brasil de hoje, nesse Brasil com uma democracia tão nova, todos nós devemos preferir um milhão de vezes os sons das vozes críticas de uma imprensa livre ao silêncio das ditaduras". É preciso haver esperança, também, de que essas palavras encontrem ressonância entre nossos vizinhos do Cone Sul.

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