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| Isabella Lanave/Especial para a Gazeta do Povo
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Ele quer ver o show do Ian Anderson na plateia, avisa uma assessora do Psicodália, em meio à garoa que não dá trégua. Haviam oferecido um lugar melhor a Arnaldo Baptista (talvez um camarote improvisado?), mas o eterno Mutante insistia em colocar o pé na lama e em se misturar aos seus fãs hippies (neo, clássicos, anacrônicos) para ver de perto um de seus ídolos, como se o sopro de vida revolucionário e fulminante que o dominou a partir de 1982 continuasse a trabalhar. Na madrugada do dia 1.º de janeiro daquele ano, o genial ex-líder da maior banda brasileira quebrou a janela do setor de psiquiatria do Hospital do Servidor Público, em São Paulo, subiu na sacada do prédio e se jogou do terceiro andar. Seu corpo magro bateu no parapeito do segundo antes de se estatelar no chão. Foi o que amorteceu a queda e salvou sua vida. O músico sofreu fraturas na base do crânio, quebrou sete costelas e teve edemas no pulmão. Passou dois meses em coma. A traqueostomia atingiu as cordas vocais, alterando sua voz e sua maneira de se expressar para sempre. Mas não deu, não. Arnaldo Baptista não viu a apresentação de Ian da plateia. Seu show foi outro.

Em certas circunstâncias, não há como ignorar a história por trás do mito, a vida e a experiência quase-morte que completam um artista. O clima em torno da apresentação do ex-Mutante - justamente em um festival psicodélico - causa um deslocamento apreciativo que, se por um lado relativiza a expectativa crítica em relação à sua apresentação, por outro constrói um cenário mágico em que tudo pode e quase deve acontecer. Porque, poxa, é o Arnaldo Baptista ali na frente, com uma camiseta coloridíssima, sentado de perfil em um piano preto brilhante que repousa sobre um tapete de rosas à frente de desenhos místicos e perturbadores de sua própria autoria.

O músico deu um tchauzinho antes de iniciar “Cê Tá Pensando Que eu Sou Lóki”, faixa de Lóki? (1974), seu primeiro álbum solo, um disco biográfico contundente. Sua mão direita já não obedece tanto. As notas são amarradas. A voz é doída, mas em algum momento temos a sensação de que, na verdade, o corpo inteiro é que não conseguiu acompanhar sua cabeça, já que a presença no palco é leve, o sorriso é fácil e os trejeitos delicados, de eterna infância, é de fazer chorar até os brutamontes.

“Obrigado, obrigado”, diz Arnaldo, tímido. As reações da plateia são diversas. Alguns cruzam os braços e ficam boquiabertos, como se contemplassem um milagre. Há quem grite, simplesmente. “Será Que eu Vou Virar Bolor?” vem na sequência. É um proto-hit de letra escapista que resume várias de suas influências musicais – de Jerry Lee Lewis a Yes. O povo canta, o povo pisa na lama. “Venho me apegando aos meus sonhos/ e à minha velha motocicleta/não gosto do pessoal da Nasa/cadê meu disco voador?”

“Obrigado, obrigado”, novamente. Nota-se que Arnaldo tem um pequeno tique: passar as mãos por sobre os cabelos. Aos 66 anos, faz isso como se ainda fosse aquele cabeludo bonito, o marido de Rita Lee, que pilotava uma moto potente e precisava ajeitar as madeixas depois de uma viagem à Cantareira. Antes de um medley que se encerra com “Blowin’ in the Wind”, de Bob Dylan, um gato amarelo de grandes bigodes que chora para cima – um de seus desenhos projetados no telão em frente ao palco – ganha atenção extra do público, já imerso naquele mar de definição desafiadora. Porque, se havia uma mistura entre pena e salvação, eis que surge a redenção.

“Balada do Louco” também acrescentou um pingo de ironia àquilo tudo. Chovia e pessoas choravam. A clássica música d’Os Mutantes é o espírito de Arnaldo Baptista, que encontrou em sua loucura criativa a melhor forma de entender a realidade. Ou uma parte dela, enfim.

Foi um show curto e profundo. Um pulo do terceiro andar naquela lama macia. Lucinha, esposa de Arnaldo -- uma antiga fã que se aproximou do músico durante seu tempo de recuperação -- estava em pé ao lado direito do palco. Cuidando, como faz há mais de 30 anos. Tirava uma foto vez ou outra. Seu rosto aparentava tranquilidade durante a execução de “A Media Luz”, conhecido tango de Carlos Gardel. Arnaldo trocou a letra de um dos versos e isso foi espetacular.

Depois do pedido de bis mais acalorado do Psicodália 2015, o músico voltou ao palco e se debruçou sobre o piano. Tocou novamente. Deu tchauzinho com as duas mãos espalmadas, qual uma criança que vê de longe alguém que gosta muito. Confirmando sua humildade absoluta, pediu desculpas. Instantes depois, como se estivesse no caminho de volta para seu planeta terno e doce, desvaneceu.

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