
Do Que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida é diferente de tudo o que Haruki Murakami publicou antes. Autor de romances, nunca havia escrito um livro de não-ficção e disse ter penado um tanto no processo.
Não apenas por ser um gênero com o qual não está acostumado, mas também por tratar de um tema que considera muito pessoal.
Murakami é maratonista. Hoje com 61 anos e físico de 40, o japonês transpira tranquilidade em seus textos. Mas não aquela que se costuma associar a mestres orientais o que seria um tremendo lugar-comum.
A tranquilidade de Murakami tem a ver com sua forma de ver o mundo, descomplicada e objetiva. As coisas são exatamente o que aparentam ser. Nada é melhor ou pior do que parece. Os mistérios existem, mas a única coisa que se pode fazer é aceitá-los como tal (e não tentar decifrá-los a todo custo).
Do Que Eu Falo... tem a estrutura de um diário, organizado pelas corridas que o escritor fundista disputou. Além de falar sobre a rotina de exercícios e sobre os tênis ideais (da marca Mizuno, sempre), o escritor é franco ao abordar sua relação com o esporte e o estado lastimável em que fica ao terminar uma maratona e ele disputou mais de duas dezenas delas.
Simples, ao falar de corrida, Murakami fala da vida. Esse seria outro lugar-comum ridículo, se não fosse verdade. Em 1978, no Japão, ele decidiu que escreveria seu primeiro romance assistindo a uma partida de beisebol. Um determinado jogador rebateu uma bola e, no mesmo segundo, ele pensou que poderia virar romancista.
Até então, era dono de um bar de jazz em Tóquio. Levava uma vida boêmia e, depois de escrever um livro e conseguir publicá-lo sem complicações, enviou o manuscrito para a uma editora e recebeu um "sim" , escolheu investir na carreira de escritor.
Fechou o bar e mudou radicalmente de rotina. "Para lidar com algo que não é saudável", escreve Murakami, falando de literatura, "é preciso ser o mais saudável possível". E diz, em seguida: "Uma alma debilitada necessita de um corpo saudável".
Com esse lema e mais ou menos da mesma forma que escolheu se tornar escritor , decidiu correr. Começou e não parou mais. Houve momentos em que detestou o esporte e desejou nunca correr outra vez, mas o mal-estar passava e logo estava de volta ao cotidiano de treinamentos.
Conversando com outros maratonistas, procurou saber em que eles pensavam quando o cansaço batia e as forças os abandonavam. Há sempre um momento nos quilômetros finais de uma maratona em que as pernas param de responder aos comandos da cabeça e um atleta só continua correndo se tiver feito o dever de casa (treinamentos) e se mantiver a concentração.
Um dos corredores consultados por Murakami disse que, diante de uma situação complicada, gosta de evocar as frases: "Dor é inevitável. Sofrimento é opcional". Perfeitas para maratonas, mas também úteis fora delas.
É possível que a tal tranquilidade do escritor se deva, em parte, à experiência. Alcançar os 60 anos sendo capaz de se aceitar como Murakami o faz é um alento para quem ainda não chegou lá porque mostra que essa é uma meta possível. Se esse não for um dos pontos admirados por seus leitores, jovens na maioria, ao menos deveria ser.
Traduzido para 42 idiomas e admirado em vários países (Estados Unidos inclusive), Murakami foi comparado a J.D. Salinger, de O Apanhador no Campo de Centeio, por ter sido capaz de descrever os anseios de uma geração em livros como Norwegian Wood e Minha Querida Sputnik (ambos da Alfaguara). O primeiro vendeu mais de 4 milhões de cópias somente no Japão número sensacional para qualquer lugar do mundo.
Os tais anseios têm muito a ver com relações amorosas e o fim da adolescência, mas também com uma atmosfera meio mágica em que coisas inexplicáveis podem acontecer como uma garota cair no sono e não acordar mais (em Após o Anoitecer).
Num dos textos de Do Que Eu Falo..., ele comenta certos sacrifícios que fez em nome da profissão. Para correr e escrever, abriu mão de uma vida social. Passou a sair pouco e a recusar convites de amigos quando estes significavam ter que fugir do esquema que havia montado para si.
Entre ter amigos ou ter leitores, Murakami optou pelo segundo grupo. Não parece arrependido disso e nem especialmente orgulhoso ou satisfeito. Foi apenas uma escolha que fez.
"Em muitos casos, aprender algo essencial na vida implica em algum tipo de dor física", diz, tentando explicar por que a corrida era o seu esporte ideal. Sempre que enfrentava uma situação desagradável, saía para correr e, às vezes, estendia o tempo um pouco mais do que estava acostumado.
Ao final do exercício, se sentia melhor e, com sorte, teria encontrado um jeito de encarar o problema, não importa qual fosse. GGG
Serviço: Do Que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida, de Haruki Murakami. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Alfaguara, 152 págs., R$ 29,90.



