
Nos últimos anos, o mercado editorial brasileiro decidiu suprir uma lacuna grave. Lançou, finalmente, novas e, por vezes, inéditas traduções das principais obras do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), entre elas os romances da consagrada trilogia: Molloy (1951), Malone Morre (1951) e O Inominável (1953).
"As traduções já circulavam informalmente fora do mercado editorial. Os romances estão sendo aos poucos editados, mas ainda há resistência quanto às traduções teatrais. Há um mito forte de que teatro não vende", diz Fábio de Souza Andrade, professor de Teoria Literária da USP e tradutor de Esperando Godot, peça de Beckett que se tornou um divisor de águas do teatro do século passado.
A tradução (CosacNaify, 2005) serviu de ponto de partida para a adaptação curitibana da peça feita pelo núcleo teatral O Círculo, que estreou em junho de 2008 e entrou novamente em cartaz no último dia 2 de outubro, no Guairinha. Dirigida por Flávio Stein e protagonizada por Mauro Zanatta e Rosana Stavis, nos papéis de Estragon e Vladimir, respectivamente, a montagem é uma das adaptações de Beckett que passaram pelo Paraná recentemente.
A mais badalada é, sem nenhuma dúvida, Fragments, sob a batuta do célebre diretor inglês Peter Brook. Encenada pelo Centro de Pesquisa Teatral que Brook comanda em Paris desde a década de 1970 , o agrupamento de quatro textos curtos de Samuel Beckett foi apresentado em Londrina nos dias 15, 16 e 17 de junho.
Brook se apropria da obra de Beckett de um modo próprio e essencial. Em um cenário minimalista, exibe "Rought for Theatre I", confrontando um homem cego e outro mutilado para falar de duas solidões e a impossibilidade do afeto; "Rockaby", sobre uma mulher que se balança para acalantar a perda da mãe; "Act Without Words II", que contrapõe as atitudes de dois homens um sempre a resmungar e o outro satisfeito; e "Come and Go", sobre três mulheres sentadas num banco a relembrar o passado.
As rubricas precisas de Beckett não foram seguidas à risca pela companhia. Em "Rockaby", Beckett escreveu a história da filha que se embala na cadeira de balanço da mãe morta para ser encenada com a personagem muda e imóvel, ouvindo sua própria voz em off. A atriz Hayley Carmichael, porém, diz o texto em cena, enquanto se balança. "Não quisemos ser realistas, queríamos a verdade humana. Penso que é isso que Beckett procurava", disse a diretora-assistente Marie-Hélène Estienne, em entrevista publicada pelo Caderno G em 19 de junho.
A ousadia da companhia é bem-vinda no momento em que Beckett se afirma fortemente no cânone oficial. "Mas isso não deve ser desculpa para que as pessoas o tornem peça de museu. É preciso cuidar para que não haja a oficialização do autor", diz Fábio Andrade.
O grupo curitibano Processo teve postura semelhante ao criar Samuel, em fevereiro 2007, uma reunião de cinco peças curtas três de Beckett ("Ato Sem Palavra I", "Ato Sem Palavra II" e "Fragmento Radiofônico I") e duas criações próprias a partir do universo do autor irlandês ("Ato Sem Palavra III" e "Fragmento Internético"). Nesta última, o texto "Fim de Partida" é transportado para a internet. "É impressionante como a linguagem de Beckett encaixou-se bem a esta nova linguagem e causou identificação do público mais jovem", diz o diretor Adriano Esturilho.
O escritor Josué Castello foi aconselhado pelos amigos a não se meter com Beckett quando decidiu assinar a dramaturgia da peça Esperando Godot. Disseram-lhe que o autor "é triste demais e nossos tempos já são bem duros". O estereótipo de autor indigesto e desperançoso ainda marca injustamente a trajetória do irlandês. "Ele abre margem para o humor. Não à toa é vinculado à linguagem do clown", diz Esturilho. "Seu olhar sobre o mundo humano não é pessimista, ou decadente. Ao contrário, se ele escreve para enfrentar impasses, tira disso uma força incomum", escreve Castello no programa do espetáculo.






