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Entrevista - John gledson

Brasil para inglês ler

John Gledson comenta a obra e as traduções de Machado de Assis

NOVIDADE | Mauro Campos
NOVIDADE (Foto: Mauro Campos)

Apesar de uma certa "invisibilidade" da literatura brasileira nos países de língua inglesa, certos autores do nosso cânone conseguem vencer essa resistência e se tornar objetos de estudos acadêmicos. Machado de Assis talvez seja o mais emblemático desses casos, sendo o único brasileiro a integrar o livro Gênio, do crítico literário Harold Bloom, e a ter entre seus admiradores intelectuais como Susan Sontag, morta em 2004, e o pesquisador John Gledson, que desde o final dos anos 70 dedica estudos ao fundador da Academia Brasileira de Letras.

Gledson fez sua primeira visita ao Brasil nos anos 70, enquanto estudava a obra de Carlos Drummond de Andrade, e logo se interessou pela obra machadiana, tendo escrito diversos livros sobre o autor, inclusive o prefácio da antologia lançada este ano pela Companhia das Letras, e assinado a mais recente tradução de Dom Casmurro para a língua inglesa, encomendada pela Oxford University Press.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Caderno G, o pesquisador comenta a recepção de Machado de Assis nos países de língua inglesa e as sutilezas idiomáticas que permeiam a obra do autor.

Você aponta em seus estudos que Machado de Assis é um dos grandes prosadores da literatura mundial. Quais seriam os motivos que dificultam o alcance da obra machadiana a mais leitores, fora do Brasil? A dificuldade principal não reside, na minha opinião, em Machado – pode ser que no seu tempo estivesse avançado em relação aos seus leitores, mas, hoje, acostumados que estamos a escritores como Pirandello, Borges, Svevo e tantos outros, tão paradoxais ou brincalhões como ele, sua originalidade, que até tem algumas raízes inglesas em Laurence Sterne, não deveria chocar. Ao menos no caso da língua inglesa, não podemos ignorar que há uma grande muralha, formada em parte por preconceito, mas também pela própria riqueza da literatura de língua inglesa. Não esqueçam que contamos com escritores do terceiro mundo que escrevem em inglês, e, no mínimo, a editora não tem que pagar uma tradução. Algumas exceções a essa regra jogam uma luz interessante sobre o caso, creio – os escritores russos, hoje clássicos, do século 19, Tolstói, Dostoiévski, Tchekov etc, e os hispano-americanos do chamado "boom", García Márquez, Vargas Llosa e outros. Eles se entre-apoiaram, se posso usar esse verbo, uns reduzindo o estranhamento que causavam os outros. No fundo, Machado está só.

Mesmo dentro do Brasil, a leitura de Machado de Assis é considerada complexa, principalmente pela sua fina ironia e jogos de linguagem. A perda da sutileza é muito grande ao ser transpassado para o inglês?Não vejo a necessidade de tal perda, pelo menos em grande escala. Uma aluna minha da UFSC, onde dei aula em 2005, notou ao traduzir Laurence Sterne para o português, que, qualquer que fosse a tradução, não era freqüente que a ironia se perdesse. Com Machado pode ser um pouco diferente. Um problema, de fato, é a própria percepção da tal ironia, porque há muita gente, brasileiros inclusive, que levam a sério o que Machado escrevia com, no mínimo, muita distância. É um fenômeno que notei várias vezes.

Além da barreira do idioma, existem outras dificuldades na compreensão da obra machadiana, principalmente no que se refere a questões políticas e sociais do período em que ele escreveu?Existem, diria que mais no aspecto social do que no político. Uma dificuldade é o entendimento do que significava uma sociedade escravocrata. O problema não é tanto a escravidão em si, assunto da literatura americana contemporânea de Machado também, mas que Machado aborda diretamente relativamente pouco. Os dois contos maduros excepcionais, "O Caso da Vara" e "Pai contra Mãe", não têm mistérios, pelo menos nesse sentido – foram publicados, note bem, depois da abolição, em 1891 e 1906, respectivamente. O que talvez fique menos claro para um habitante do século 21, e para um inglês, é a posição angustiante da classe intermediária, que Roberto Schwarz chama de "agregados", os dependentes de favor, chaves da sociedade brasileira de ontem e de hoje. Veja justamente esses dois contos, cujas figuras principais, Sinhá Rita e Cândido Neves, pertencem a esse estrato, acossados por uma sociedade que lhes dá pouca saída, e que encontram saída, justamente, batendo nos escravos.

Na sua opinião, a literatura brasileira está bem representada nas traduções em inglês?Não saberia dar uma opinião abrangente – já vi traduções boas e ruins. E, como leio os originais, há pouco incentivo para ler as traduções, há muitas que desconheço. Há casos infelizes, as primeiras traduções de Clarice e algumas de Machado (as mais recentes de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Quincas Borba, entre elas). Há outros bem mais encorajadores – uma antologia de Drummond, editada por Thomas Colchie, por exemplo, a única boa de três, uma série de ficção moderna editada pelo mesmo Colchie nos anos 80, que inclui boas traduções de Ivan Ângelo, por exemplo, feitas por Ellen Watson. Há o velho exemplo, ainda hoje não superado, da tradução de Os Sertões (Euclides da Cunha), de Samuel Putnam. Um caso interessante é o de Guimarães Rosa – a velha tradução de Grande Sertão: Veredas, The Devil to Pay in the Backlands, segundo a opinião de muitos, reduz o romance a um bangue-bangue. Mas as posteriores, dos contos, a de Barbara Shelby para Primeiras Estórias e a de David Treece para Sagarana, são bem melhores. Creio que esta tendência, para uma melhoria gradual, deve ser a regra.

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