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Oscar 2011

Brasil sob um olhar estrangeiro

Lixo Extraordinário, documentário indicado ao Oscar, incomoda o espectador brasileiro por trazer uma perspectiva exótica e por revelar um país desconhecido

Tião, o presidente da Associação dos Catadores do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho: morte de Marat | Fotos: Divulgação
Tião, o presidente da Associação dos Catadores do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho: morte de Marat (Foto: Fotos: Divulgação)
Vik Muniz no lixão do Jardim Gramacho: selecção dos personagens |

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Vik Muniz no lixão do Jardim Gramacho: selecção dos personagens

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Assistir a Lixo Extraordinário, indicado ao Oscar de melhor documentário, é uma experiência intensa e, por vezes, desconfortável. O filme, apesar de ser codirigido por dois brasileiros, João Jardim e Karen Hartley, e de ter como personagem central um artista plástico nacional, o paulista Vik Muniz, não tem o discurso de alguém nascido e criado no país. Quem o assina é a inglesa Lucy Walker, cujo olhar estrangeiro conduz o espectador da primeira à última cena. Isso não é um defeito, mas, antes, uma característica inerente à obra e assumida já de início.Talvez por conta desse traço, a produção seja motivo de tanta inquietação para um espectador daqui.

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O estranhamento se inicia já na sequência de abertura do longa-metragem, quando somos apresentados a Vik Muniz, que com um inglês fluente, correto, mas com indisfarçável sotaque brasileiro, aos poucos se faz conhecer. Ficamos sabendo que ele é hoje um dos grandes nomes da arte contemporânea mundial. Descobrimos que ele vive e trabalha no Brooklyn, em Nova York, com a mulher Janaína e uma filha. Lá ele mantém seu estúdio, onde produz as obras que o consagraram mundo afora.

Vik e Janaína conversam entre si em inglês. Não na "vida real", mas diante da câmera. O mesmo idioma é utilizado pelo artista quando ele se comunica pela internet com Fábio Ghivelder, seu assistente, que está no Rio de Janeiro. Por meio dele, Vik fica sabendo a respeito do Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, região metropolitana da capital fluminense. Lá está instalado o que era, até a gravação do filme, o maior lixão do mundo.

Vik pretende desenvolver seu próximo projeto junto a personagens escolhidos entre a legião de catadores de resíduos recicláveis que trabalham no local, mas para saber se encontrou o que procurava, precisa ver o aterro sanitário de perto.

A proposta do artista é produzir obras a partir dos dejetos recolhidos pelos catadores e, em todas as fases do processo de criação dos trabalhos, contar com a participação ativa dos selecionados, que não apenas vão integrar sua equipe, mas também serão modelos de grandes painéis.

Primeiro, Vik os fotografa. Depois, amplia essas imagens, que servem de base para composições gigantescas, construídas, centímetro a centímetro, com objetos retirados do lixão do Jardim Gramacho, que vão de sandálias de plástico e garrafas pet a adereços e alegorias de carnaval semidestruídas. Fotografadas, essas instalações se transformam em retratos de imenso impacto visual. A intenção de Vik é que as obras sejam vendidas e o dinheiro, revertido em be­­nefício da Associação dos Catadores do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho.

Exotismo

O estranhamento de acompanhar cidadãos brasileiros falando em inglês o tempo todo se transforma quando Vik, Fábio e a equipe do filme chegam ao Jardim Gramacho. Na medida em que se intensifica o contato com a comunidade e os personagens do lixão ganham proeminência, o português brasileiro assume a posição de idioma oficial da produção.

Não deve ter sido fácil fazer a triagem dos homens e mulheres que serviriam de modelos e colaboradores de Vik. São tantas as histórias, todas tão ricas em detalhes, a maior parte delas marcada por perdas e eventos trágicos, que peneirar meia dúzia dentre centenas de pessoas só pode ter sido um trabalho hercúleo.

As imagens do filme que mostram o processo de escolha do "elenco", as entrevistas com os personagens, que incluem visitas a suas casas, são alternadas a perturbadoras cenas do trabalho diário no Jardim Gramacho.

Toneladas de detritos orgânicos misturados a materiais recicláveis são despejados por grandes caminhões, que as "vomitam" diante de um verdadeiro exército de catadores famintos pelo que poderá ser transformado em dinheiro.

À espreita, outra legião, formada por urubus, que também se servem dos restos de moradores de coberturas da zona sul, em bairros de classe média e nas favelas do Rio, tudo junto e misturado.

O interessante é perceber que o desconforto gerado pelo fato de o filme não ser, em princípio, um documentário nacional, mas sobre o Brasil, não cede até subirem os créditos finais, ao som da trilha sonora do norte-americano Moby. Ou melhor, até dá alguma trégua, mas é substituído por outro incômodo. Aos poucos, o olhar estrangeiro de Lucy Walker, atenuado pela codireção de Jardim e Karen, assim como pela fotografia de Dudu Miranda, coassinada por Ernesto Herrman e pela curitibana Heloísa Passos, não é mais o único fator gerador de estranhamento.

País estranho

Lixo Extraordinário incomoda ainda mais porque nos descobrimos estrangeiros no próprio país. A maior parte dos brasileiros ignora a realidade mostrada pela produção. Pouco sabe ou deseja conhecer sobre a miséria, o abandono, as péssimas condições de trabalho e a luta diária por dignidade em um ambiente tão hostil como aquele ao qual os personagens do filme são submetidos dia após dia.

Vik Muniz diz, já no início do filme, que um dos maiores problemas do Brasil é o preconceito social, "o fato de que brasileiros de classes mais altas se julgam melhores do que a maioria do povo". Lucy, de seu ponto de vista externo, evidencia esse abismo social por meio da narrativa, da escolha das imagens e da investigação da vida dos personagens. Há um tom de choque que permeia o filme. Mas também há, na base de tudo, uma mensagem de esperança, a começar pela trajetória do próprio artista.

Em um momento-chave ve­­mos imagens da casa onde Vik cresceu num bairro pobre da periferia de São Paulo. Ele conta que, ainda garoto, fazia um diário da evolução das manchas de umidade que cresciam no teto de seu quarto. Confessa que, quando começou a ganhar dinheiro com sua arte, quis ter tudo, até o que não precisava. "Agora, que tenho tudo, descobri que preciso de muito menos", diz.

Esse otimismo, contudo, não é tão ingênuo ou acrítico quanto pode soar aqui. Um dos pontos altos do documentário é a discussão em que Vik, a mulher e Fábio falam sobre o impacto que a experiência de sair do lixão e trabalhar por meses com o artista e sua equipe está tendo e terá na vida dos personagens escolhidos.

Janaína preocupa-se com o choque da volta à realidade, no Jardim Gramacho. Vik diz que o risco de ver outro mundo vale a pena; a descoberta de novas possibilidades terá efeito positivo na vida daquelas pessoas. Ninguém parece ter absoluta certeza do que está dizendo.

Acertamente, é Tião, ou Sebastião Carlos dos Santos, o presidente da Associação dos Catadores do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, que Vik decide levar para Londres.

Inteligente, curioso e politizado, o jovem vê, emcionado e atônito, o quadro com sua fotoo encarnando a morte numa banheira do médico, filósofo e revolucionário francês Marat, recriação da tela de Jacques Louis David, ser leiloado pelo equivalente a quase R$ 100 mil. A soma será revertida em prol de sua entidade, a mesma que, no meio do filme, é assaltada, e da qual levam todo o dinheiro que seria utilizado para pagar os catadores.

Nos dois momentos, o sempre alegre o brincalhão Tião, que sonha ir à festa do Oscar com Vik e a equipe do filme, chora diante da câmera. Antes, de tristeza e frustração. Depois, de júbilo. Diz que está se sentindo um "popstar".

É ele, de certa forma, o verdadeiro heroi de Lixo Extraordinário, e não Vik, um vitorioso hesitante, ainda em visível – e assumido – conflito com o Brasil que fala português. GGGG

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