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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Ao completar oito décadas de vida, em 2010, Clint Eastwood deu uma dessas entrevistas desaforadas das quais apenas os carismáticos escapam sem críticas.

Entre outras coisas, declarou que a maior vantagem de ter 80 anos é que ninguém poderia lhe ensinar mais nada. O terreno sob seus pés era sólido: ao longo da década anterior, se consolidou como um diretor coerente e diversificado ao mesmo tempo. Sua assinatura audiovisual tinha se tornado única: planos sutis com câmera em tripé e pouco movimento, corte naturalista, trilha minimalista – notas esparsas tocadas num único instrumento –, e iluminação fria com recortes contrastantes.

Tudo servindo a dramas intimistas que passam longe do melodrama, cenas de estratos médios da vida urbana sob a lente de um narrador que de fato havia vivido muito e pouco se impressionava, deixando que a crueldade intrínseca da existência humana ganhasse sozinha o primeiro plano.

Assim emendou quatro filmes essenciais do cinema da década passada: Sobre Meninos e Lobos (2003), Menina de Ouro (2004) e o díptico A Conquista da Honra / Cartas de Iwo Jima (2006), este essencial para a argumentação que começará em breve. Foi nessa época que eu, com bem menos de 80 anos e muito por aprender, acreditei que Eastwood seria incapaz de errar.

Com esse espírito fui ao cinema para A Troca (2008), Ao longo de duas horas, Angelina Jolie chorou o rio que personagens anteriores dele represaram, e o artista que eu admirava havia aceitado ser veículo para uma atriz influente tentar pescar um Oscar.

Moral da história: Clint não está preocupado em agradar você.

Sniper Americano. Improvável você ter chegado a este parágrafo sem saber da discussão ideológica em torno do filme. Com esse nome, cartaz e diretor (o republicano mais bem resolvido do mundo das artes), a polêmica era previsível.

Toda informação pré-exibição aponta para propaganda militarista disfarçada de cinema, numa modernização dos heróis musculosos e imbatíveis da era Reagan.

E talvez essa publicidade desviante tenha sido justamente a responsável por fazer do filme um sucesso de bilheteria. Sniper lucrou o equivalente às bilheterias de todos os outros indicados a melhor filme no Oscar 2015, como tratou de ressaltar o apresentador Neil Patrick Harris durante a premiação, causando mais desconforto na plateia que suas muitas piadas sem graça.

A fórmula de Richard Linklater para Boyhood, de filmar ao longo do tempo da história, cairia ainda melhor para o filme de Eastwood. Seu filme retrata 12 anos da consciência moral coletiva nos Estados Unidos: da indignação pós-traumática do 11 de Setembro, que desencadeia uma união patriótica motivadora da resposta belicista, à desumanização de um conflito prolongado numa terra estranha e hostil, onde a ideia de diferença é combatida em seus aspectos mais básicos.

Todo esse processo está contido no personagem principal, que encerra sua jornada voluntária esvaziado: seu talento de atirador subsiste à medida em que exaure suas motivações, seus princípios éticos e, por fim, sua alma no campo de batalha.

Sua ação desidratada se torna puramente mecânica, como convém às máquinas de guerra. Enquanto isso, o público do cinema acompanha a perda do próprio referencial de heroísmo, o mesmo que motivou grande parte dele a sentar naquelas poltronas.

Clint Eastwood é um dos únicos cineastas veteranos a ainda produzir para grandes estúdios, jogando o jogo da indústria.

Outros de sua geração, como Woody Allen, Manoel de Oliveira e Bernardo Bertolucci, estão abrigados no circuito alternativo, financiados pela bilheteria de seu público cativo. Por isso, o equilíbrio entre integridade artística e visão de mercado é sempre negociado, e o caráter contestatório típico da arte surge subversivamente, a partir da negação sutil da mensagem principal.

O gênero “filme de guerra” quase sempre incorre na parcialidade típica da própria guerra. Há dois lados, precisamos escolher um e tornar o outro figurante, senão anulamos a motivação dos nossos personagens e a narrativa não progride.

Em A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, Eastwood inovou ao narrar nos dois fronts. No ocidental, revela as técnicas de propaganda americana (as mesmas que ele é acusado de reproduzir); e no oriental, o abandono dos soldados que acreditavam lutar por uma causa divina, num arriscado filme americano falado quase todo em japonês.

De romper esquematismos, Clint entende. É dileto aprendiz de Sergio Leone, que renovou o gênero faroeste nos anos 60 ao romper com a fórmula mocinho e bandido (seu The Good, the Bad and the Ugly, ou Três Homens em Conflito, bem poderia se chamar “The Id, the Ego and the Superego”).

Desde que passou para trás da câmera, Clint sempre se preocupou em resolver enigmas psicológicos, porém jamais foi atingido pelo complexo de obra-prima, esse inibidor de apetite intelectual.

Ele fez suspenses B de trama inverossímil (Perversa Paixão, Dívida de Sangue), dramalhões (As Pontes de Madison), cinebiografias (Bird, J. Edgar), retornou ao faroeste com densidade (Os Imperdoáveis) e com pastiche (Bronco Billy) e nos tempos de vacas magras chegou a contracenar com um macaco (Doido pra Brigar, Louco pra Amar) e com a atriz Sondra Locke, de talento interpretativo equivalente.

A ética produtiva de Clint Eastwood é típica da geração dos veteranos, para os quais ruim é não trabalhar. Pelo excesso de produções em contraste à falta de bons roteiros no mercado, às vezes peca. E assim segue vivendo. E aprendendo.

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