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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Sabe aquele cara que te diz que sonha em preto e branco?

Diz que rola mesmo.

Mas sabe o que é mais estranho? Parece que não há relatos desses sonhos monocromáticos (ou acromáticos, se você preferir) antes do cinema P&B. Teria sido uma limitação de um meio de representação que acabou gerando uma nova maneira de a gente se relacionar com a realidade.

Bem louco…

Definitivamente um caso de a-vida-imita-a-arte…

Reserva essa informação, agora, que eu já volto.

Só queria antes mencionar um milionário francês do começo do século 20. Um camarada chamado Albert Kahn.

Sujeito era um pacifista: um idealista. E uma das coisas que ele fez na vida foi montar um projeto GIGANTE, que ele chamou de “Arquivos do Planeta”.

Ao longo de 20 anos ele mandou fotógrafos pra tudo quanto era canto do mundo, pra registrar fundamentalmente a vida e os costumes das pessoas comuns, logo antes do que ele já antevia que seria a explosão da “modernização”.

Quando a empreitada terminou, havia (e há, hoje no museu Albert Kahn, em Paris) 72 mil fotos, além de horas e horas de filmes, que são um dos conjuntos de imagens mais tocantes que você pode conhecer na vida.

Vai por mim…

África, Oriente Médio, os Bálcãs, a Rússia, as Américas. Gente. Pessoas. Tradições. Roupas.

Só que tem um detalhe. Um detalhe que muda tudo.

Porque uma parcela significativa dessas imagens, desde 1908, era feita em CORES!

Isso graças às chapas de autocromos, o primeiro processo comercialmente viável de fotografia colorida patenteado pelos irmãos Lumière, que usava fécula de batata pigmentada pra gerar umas imagens meio granuladas que são simplesmente lindas.

É impressionante o quanto ver em cores um mundo que você está acostumado a conceber em preto e branco aproxima de você aquela realidade. Mesmo que o tempo de exposição, de 8 a 10 segundos, de vez em quando gerasse uns borrões quando as pessoas se mexiam.

Pra mim, até esses borrões acrescentam vida às fotos. Ou, por outro lado, acrescentam um grau de mistério, às vezes, numa foto em que um grupo está todo nitidamente definido, mas apenas a cabeça de apenas uma pessoa virou uma mancha informe.

E os caras, entre esses outros tantos destinos, vieram ao Rio de Janeiro em 1908! Machado de Assis estava vivo. Naquela cidade, com aquelas cores.

É um privilégio imenso ver aquelas fotos, hoje também publicadas em livro e apresentadas numa série incrível da BBC (The Wonderful World of Albert Kahn), que eu fui conhecer, como sempre, graças ao grande Cristovão Tezza.

Ver os chineses do tempo do último imperador. Os russos do tempo do czar. Os multiétnicos cidadãos do Império Otomano. Uma criança descansando em Florença. Uma menina exibindo suas roupas de domingo na Irlanda (essas duas últimas estão entre as imagens mais lindas que eu já vi na vida… concorrendo com qualquer pintor).

Põe privilégio nisso.

E claro que hoje eu só posso ver essa imagens com facilidade, e recomendar pra vocês aqui, por causa da internet, o verdadeiro Arquivo do Mundo, que Kahn nunca nem pôde imaginar. Ele adoraria ver hoje as pessoas fazerem time-lapses fundindo imagens de locais públicos feitas por anônimos ao longo de mais de cem anos. Tudo ali, de graça, pra todo mundo.

Mas, no caso dele, além desse impacto histórico, que é realmente a vitória final do projeto original de monsieur Kahn, fica o fato de que a beleza íntima da textura e das cores dos autocromos é totalmente hipnótica.

Parece que as placas eram extrassensíveis ao extremo azul do espectro, o que levava os fotógrafos a tentar compensar com filtros nas lentes. E isso gerava os vermelhos mais escandalosamente gloriosos que eu já vi.

“Escandalosamente gloriosos”: não é uma hipérbole.

E tudo tinto de um certo “pontilhismo” daqueles grãos de fécula de batata.

Lembra a informação lá de cima?

Dos sonhos?

Pois o negócio é que hoje, enquanto eu estou aqui escrevendo pra você, eu me vejo incapaz de ver os vermelhos do mundo “real” sem enxergar nitidamente neles o vermelho ainda mais real que está ali escondido, esperando que um autocromo venha fazer ele explodir na minha cara.

Sério.

O planeta de Kahn mudou o meu mundinho, pelo menos.

Valeu, Albert.

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