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Numa cidade estranha, numa casa vejo placa de cabelereira, da varanda vasos me acenam com suas flores; entro. A recepcionista diz que estou com sorte, a pessoa que reservou a hora não apareceu, Dona Rosana vai me atender.

Sento na dignidade de uma cadeira tão antiga quanto limpa, e Dona Rosana começa o corte de cabelo, que sempre me faz dormitar. Mas a tevê mostra um salão com muitas poltronas vazias, só um engravatado numa delas, peço para aumentar o volume.

Então ficamos sabendo que, na Câmara Federal, uma comissão aprovou mais de cem projetos, em poucos minutos, porque só um deputado estava presente, embora mais de vinte tivessem assinado a lista de presença...

Aí aparece quem reservou hora, Dona Rosana diz que não pode mais atender, pois agora está me atendendo. A mulher diz que vai esperar para ser atendida depois, Dona Rosana diz que depois a hora está reservada para outra.

– Mas eu sou cliente antiga – diz a mulher.

Dona Rosana diz que não pode destratar hora, está agendada.

– Mas a agenda é mais importante que gente?! – a mulher se irrita, Dona Rosana responde calma:

– A agenda é gente, tenho de respeitar.

A mulher se vai batendo saltos, peço para desligar a tevê, e ficamos num silêncio só picado pelos passarinhos lá fora e embalado pelo ronquinho da geladeira na cozinha. Até que falo:

– Vou ficar chateado se a senhora perder cliente antiga por minha causa. Pois não vou voltar mais aqui, estou de passagem e...

– Ah – ela fala tranquila. – Estamos todos de passagem nesta vida. E o tempo de todo mundo é igual, né?

Falo que o Brasil seria diferente se todos respeitassem assim os compromissos. Conto que, na Inglaterra, deputado só pode faltar à sessão se outros dos outros partidos também faltarem e os líderes partidários autorizarem. Se não, o deputado soma uma falta e, com três faltas, o partido não permitirá sua recandidatura.

– E ganham menos que os nossos, com muito menos assessores e, para se eleger, têm de comparecer a centenas de reuniões com moradores do distrito eleitoral. Muitos fazem campanha a pé.

Dona Rosana diz que viu outro dia mesmo o deputado em quem votou:

– Vi na televisão, na propaganda política.

A geladeira silencia... Falo que às vezes aparece no telejornal a câmara inglesa, os deputados sentados em cadeiras de espaldar reto, enfileiradas, num salão muito menor que o dos nossos deputados, onde as poltronas são reclináveis e giratórias.

Então chega da escola um menino, neto dela, com a mãe, que trabalha ali como manicure, com carteira assinada como a recepcionista, diz Dona Rosana com orgulho. O menino pede dinheiro para ir comprar alguma coisa, a avó dá. Pergunto se ela sabe que paga 40% de impostos embutidos para o governo em tudo que compra.

– Sei, mas tento não lembrar pra não passar raiva. Penso nas marchas contra a corrupção que começam a pipocar pelo país. Pergunto se ela irá, se fizerem alguma marcha na cidade. Ela diz que só se avisarem uma semana antes.

– Por causa da minha agenda.

A geladeira retoma seu ronco solidário.

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