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Ele está divorciando porque a mulher fez plástica aqui, ali, lá, acolá e alhures, até que um dia ele não reconheceu mais a mulher.

Perguntou quem é você, ela nem ouviu, perguntou o que ele achava do novo queixo dela.

Ele falou que queria era não esquecer o velho queixo, e ela perguntou porque, ele falou que tinha se apaixonado por ela a partir daquele queixo, que tinha uma covinha.

– E agora cadê a covinha?

– Eu tinha de escolher! – ela estrilou – Pra acabar com a papada, tinha de liquidar a covinha, questão de lógica cirúrgica!

– Mas aquela covinha – ele gemeu – não era só sua, era nossa, era até, só agora vejo, minha covinha!

Ela falou que, se ele queria tanto, o médico dela podia fazer covinha nele em qualquer ponto do corpo.

Ele falou que tinha precisado não de uma, mas de duas covinhas, quando era menino e o castigo, para os bagunceiros na escola, era ajoelhar sobre um grão de milho debaixo de cada joelho; e, com covinhas nos joelhos, teria acomodado os grãos sem tanta dor; mas agora não era mais um menino bagunceiro...

Ela calou, passando a língua sobre o silicone dos lábios, daí piscou os olhos repuxados e sibilou:

– Eu devia ter sabido desse teu trauma antes de casar com um rochedo como você...

– Rochedo porque?

Ela recolheu uma lágrima na ponta da longa unha escarlate, falou com voz dolorida:

– Acho que por causa desse trauma de menino, rochedo você é e sempre será, esse monstro que não muda em nada, sempre o mesmo, sem mudar nem o jornal nem a marca de café durante décadas!

Ele ficou mascando os lábios, até que resmungou:

– Sinto muito, meu bem, mas sinto que acabou.

Ela enxugou outra lágrima, retocando a maquiagem com lenço de papel antes de sussurrar:

– Você não me ama mais?

– Amo a outra.

Ela respirou fundo, os olhos chispando.

– Eu sabia! Então você tem outra!

– Outra, não. Você mesma, mas aquela, antes de mudar tanto. Aquela eu sempre vou amar, vou ter tanta saudade que me dói viver com você, uma pessoa tão diferente dela!

Ela deixou melecar a maquiagem, as lágrimas formando dois filetes que se encontraram na ponta do queixo, pingando na xícara de café. Ele pegou-lhe a mão para perguntar:

– Posso continuar te chamando de meu bem?

– Porque, se quer me deixar?!

– Para que – ele falou olhando nos olhos – o mal nunca se ponha entre nós, principalmente na forma de advogados mal intencionados.

Tudo bem, ela falou olhando também nos olhos, mas ele pensou: seriam ainda os olhos dela?

E ela bebeu o café com um gostinho estranho, pensando no famoso fel da solidão.

Ele largou o jornal, talvez ela tivesse razão: no seu novo apartamento, a primeira coisa que ia fazer seria mudar de jornal. Levantou suspirando ou suspirou levantando, o certo é que falou frio:

– Adeus. Vou sentir saudade.

– De mim?

– Não, da covinha.

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