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Amo teus pés, mulher.

Vejo pés mais elegantes, mais finos e até mais bonitos, mas nenhuns nem outros são, como os teus, pés que se juntam tão bem nos meus, quando vemos tevê juntos e as mãos se cansam de enlaçar, então juntamos os pés.

Quantas caminhadas fizemos por estradas, morros, montanhas, praias, matas e até brejos, afundando as canelas, mas rindo infantilmente. Talvez seja por isso que, antes de tudo, amo teus pés: seguindo tuas pegadas, sempre me reencontro criança.

E foi graças aos pés que nos conhecemos, dançando, lembra? Você estava sem as lentes de contato e, conforme você conta, foi preciso uma amiga te cutucar: olha lá, o cara não para de olhar para você. Mas continuou dançando, sozinha e linda, até eu chegar e dizer oi, vou ao carro trocar de sapatos e já volto pra gente dançar. Você me olhou espantada e até hoje, quando conta esta história, diz que nunca ouviu uma abordagem tão... pedestre.

É que eu estava com tênis, que não deslizam como os sapatos que, sei lá porque, eu tinha no carro. Fui trocar, voltei, dançamos e, depois, fui te levar até teu carro. Perguntei se a gente ia voltar a se ver, e você falou já sentada, mas com um pé dentro e outro ainda fora do carro:

– Só se for pra namorar firme.

Fiquei com um pé atrás, mas marcamos encontro. Então você explicaria que era mulher de pés no chão, já descasada, com duas filhas, não tinha idade para ilusões nem desencantos. Mas se encantou com o jantar que preparei mesmo para te encantar. Só que, depois, quando começamos a nos beijar, você novamente botou os pés no chão para falar sorrindo:

– Cama, só depois de exames de sangue, tá, teu e meu.

Como eu já era doador de sangue, concordei, fui doar, embora duvidasse que nosso caso fosse dar pé.

Um mês depois, te mostrei o cartão enviado pelo Hospital Universitário, como sempre indicando nenhuma doença, e você mostrou seu cartão também. Quando acordei, no dia seguinte, a primeira coisa que vi foi meu sapato sobre teu sapato ao lado da cama.

Agora, examinando fósseis de um primata australiano, cientistas descobriram que houve um tempo, lá nos antanhos mais antigos, em que nossos ancestrais já palmilhavam o chão mas ainda subiam em árvores com a facilidade dos macacos. Os pés, evoluindo para andar, já não conseguiam mais segurar os galhos como fazem as mãos, mas ainda, conforme indicam os ossos dos quadris nos fósseis, nossos ancestrais subiam muito nas árvores.

Aqui na chácara, depois de três anos sem mangas, as mangueiras deram tantas que você parece criança de galho em galho, jogando mangas para eu no chão encher caixas e sacolas.

Que macaca bonita e ágil você se torna catando frutas, mulher! Decerto porque teve muito treinamento quando criança, como você conta a nossos netos:

– No sítio, minha brincadeira era trepar em árvore, ou rolar na ribanceira enrolada dentro de pneu de caminhão. Quando chovia, a coisa mais gostosa era caminhar na enxurrada! E depois também era tão gostoso sentir a bucha da minha mãe esfregando meus pés!

A caminho de Machu Pichu, depois do dia inteiro palmilhando trilhas de pedra, subindo escadas milenares de rochas, entre montanhas de picos nevados e lhamas a mastigar imensa paz, você sentou à beira do riacho, tirou os tênis, as meias, enfiou os pés na água gelada e sorriu para o poente, depois disse que os pés têm ligação direta com a alma.

Então sempre digo a nossos netos: amo a vovó, da alma aos pés!

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