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Romance -A Morte do Pai- Karl Ove Knausgard. Tradução de Leonardo Pinto Silva. Companhia das Letras, 512 págs., R$ 49,50. |
Romance -A Morte do Pai- Karl Ove Knausgard. Tradução de Leonardo Pinto Silva. Companhia das Letras, 512 págs., R$ 49,50.| Foto:

O romancista norueguês Karl Ove Knausgard é um escritor que se arrisca a pensar. Em suas mãos, os pequenos eventos da vida diária se transformam em delicadas – ainda que insuficientes – iluminações. Knausgard (que cancelou sua vinda à Flip na última terça-feira alegando motivos pessoais) sabe que nada sabe, mas a aceitação desse limite não o impede de esboçar focos de sentidos sobre o real. Sua ficção é uma tentativa de resposta a um mundo alagado por imagens, com as fronteiras quebradas e as ideias despedaçadas. Estranho salão luminoso em que as paredes se rompem, as mentes se esgarçam e tudo se iguala.

"Nossa mente está inundada de imagens", diz o narrador do seu A Morte do Pai (Companhia das Letras, tradução do norueguês de Leonardo Pinto Silva). "A sensação que isso transmite, de que o mundo é pequeno, encerrado em si mesmo, sem abertura para o exterior, é quase incestuosa". Tornamo-nos reféns das imagens e de seus efeitos espetaculares. Elas detêm um poder estarrecedor: parecem dar conta de tudo. "Embora eu soubesse que essa sensação era profundamente falsa, já que na verdade não sabemos nada sobre coisa alguma, eu não conseguia escapar dela".

Sim, ainda há um pequeno mundo que resiste e que insiste em dizer que não existem grandes explicações, ou soluções. Hoje, o sujeito, o singular e o precário parecem condenados. O sentido parece ter perdido o sentido. Enquanto multidões tomam as ruas do país carregadas por reivindicações contraditórias e aspirações divergentes, leio o primeiro volume da grande saga que Knausgard batizou de Minha Luta. Justamente o romance que trata do pai e de sua morte. Grande perda que hoje nos atordoa.

Quem mais está morrendo, hoje, senão o pai? O que estamos perdendo, senão noções como as de direção, de fronteira e de sentido – conceitos que só a figura paterna nos ajuda a formar? Em um mundo em que tudo tem o mesmo valor, nada vale nada. Impossível desvincular o romance que leio das imagens que me cercam. O livro de Knausgard é um relato que se desdobra em uma infinidade de pequenas imagens discordantes. Ele não escreve, porém, para celebrar a dispersão e o transe. Ao contrário, escreve para encarar a armadilha que armamos para nós mesmos e meditar a respeito da melhor maneira de desmontá-la.

Knausgard insiste em procurar um sentido, embora saiba que não conseguirá achá-lo. Dizendo melhor: sabe que, ao contrário, precisará se contentar com minguados esboços de sentido que, ainda assim – ou sentido não teriam – podemos, muito precariamente, costurar. Sabe o narrador de Knausgard (ele mesmo) que, para enfrentar o espelho despedaçado que é sua existência, ele necessita agarrar-se a uma direção. Precisa de um fio que o puxe. De uma ponte – ainda que ela balance sobre um abismo. Um caminho que ordene seu caos interior e que o acolha.

Seu deslumbramento diante das telas do pintor inglês John Constable ilustra este impasse. Conhece Knausgard os fortes argumentos dos defensores da arte contemporânea, que empurram todo equilíbrio para um passado desprezível. Mas, diante de uma tela de Constable, um tremor irrecusável o toma. "É para esse lugar que devo ir", ele sente. Um lugar em que ainda possa sentir o chão. Lugar distante, mas onde o pequeno, o pessoal e o invisível insistam em existir. É ali que algo ainda pode ser traçado – é ali que algo pode salvá-lo do grande vazio que a morte do pai instaura.

Não só a morte do pai real, o homem que, certa noite, cai em seu banheiro. Quando o filho surge para ajudá-lo, ele lhe diz: "Nós vamos para o sul, de qualquer jeito". Sustenta, ainda, o senso de uma direção. "É para outro sul que você vai", responde o filho. Ainda assim, mesmo na despedida, lhe oferece uma direção também. Não morre só o pai de carne e osso, morre o que ele representa. E é isso – esse sentido – que o filho deve salvar.

O sentido – a ficção de Knausgard reafirma isso – não é algo precioso que se guarde em um estojo. Pode estar, por exemplo, em uma tela de Constable. É algo que devemos buscar – a vida humana é uma perseguição. Assinala, ainda, a diferença entre a compreensão e a sabedoria. "Compreensão não deve ser confundida com sabedoria, pois eu não sabia quase nada". A compreensão não é um ponto de chegada, mas uma rota. "Compreender muito sempre se faz acompanhar pela consciência dos limites da compreensão", medita. A compreensão é lenta, diminuta, mas real. Não tem o brilho atordoante das grandes performances, ou das grandes soluções. É imperfeita, suja, até desagradável, mas é. É só uma ponte, um fio, uma sombra que seja, mas algo que esboça um caminho. Algo que fura a perfeição das imagens.

A tecnologia não dá importância a este furo, busca apenas expandir-se (para todos os lados), derramar-se (sobre todos): deseja tudo. Prega a utopia do impecável. Vivemos um tempo em que "tudo se tornou espírito", isto é, imagem. Como anuncia Knausgard na abertura de seu romance: "Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para". Pode ser transformado em pura imagem também – talvez em um vermelho flamejante. Só um lampejo sem direção. Mesmo um coração, porém, precisa de um sentido. É a busca de um fio (ficção), é a aceitação de que o "grande sentido" (assim como "a grande conquista") sempre nos escapará, que nos leva a se deter nessa via tão frágil. Mas, ao mesmo tempo, tão humana.

Knausgard sabe que há um cotidiano que nos prende e que nos obriga a repetir e repetir. Que nos conduz ao automático e nos torna irracionais: que odeia o pensamento. Este cotidiano "feliz" (ilusório) não o interessa. "A felicidade não é meu objetivo", afirma. Diante da angústia, põe-se a escrever, "incendiando toda essa angústia através da escrita". Ele quer mais – mesmo sabendo que este "mais" é quase nada. Escreve para avançar, embora conheça os estreitos limites de sua escrita. Aceita-os e, assim, agora já sem o pai, se torna seu próprio pai. Não para deixar de sonhar, mas para temperar seus sonhos com a crosta inóspita do real. É ali, como uma linha muito sutil, quase invisível, que o sentido dorme. Só ali – no berço estreito do sentido – temos alguma chance de amainar a agonia.

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