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Romance: Fui à Bulgária Procurar por Campos de Carvalho. Augusto de Guimaraens Cavalcanti. 7 Letras, 110 págs., R$ 35 | Reprodução
Romance: Fui à Bulgária Procurar por Campos de Carvalho. Augusto de Guimaraens Cavalcanti. 7 Letras, 110 págs., R$ 35| Foto: Reprodução

Quando eu era menino, se a memória não me trai – mas memória é sempre traição –, as ruas do Rio de Janeiro foram tomadas por duas pichações. A primeira dizia: "A lua vai cair". A outra respondia: "Celacanto provoca maremoto". A guerra entre os dois grupos de pichadores é, talvez, a origem mais remota das inscrições que, desde então, se espalham pelas paredes da cidade. A manifestação mais arcaica de uma obsessão em sujar, ou, pensando ao contrário, de uma nova arte. Começo pelos celacantos, peixes de nadadeiras muito fortes considerados verdadeiros "fósseis vivos", pois seus parentes mais próximos desapareceram há 280 milhões de anos. Celacantos são, portanto, a presença de uma ausência. Parecem mais inventados que verdadeiros, e talvez sejam mesmo. Só porque sua existência como espécie é absolutamente improvável, eles teimam em existir. São peixes cabeçudos, que reinventaram a si mesmos.

A queda da Lua sobre a Terra, apesar da força gravitacional que a sustenta, é uma hipótese que sempre fascinou o homem. Alimenta a ficção científica, os filmes catástrofes e os pesadelos mais banais. Se vier, um dia, a ocorrer, será a prova da fertilidade dos mitos. Sim: o mito pode gerar o real. Dizendo de outro modo: sem a invenção (a ficção, a poesia, o sonho), a realidade não existiria.

Talvez já não haja nada de tão impressionante na Lua e em sua hipotética queda. "Um homem está chegando e já chegou à Lua, porém há mais de vinte séculos um poeta já sabia dos feitiços capazes de fazer a Lua descer até a Terra". A atenta observação aparece em Fui à Bulgária Procurar por Campos de Carvalho (7 Letras), imperdível romance de estreia do carioca Augusto Guimaraens Cavalcanti, de 38 anos. O livro é uma espécie torta de re-escritura de O Púcaro Búlgaro, romance de despedida do escritor Campos de Carvalho (1916-1998), um dos mais brilhantes, mas mais esquecidos do século 20. Ele tem sua pequena obra, de seis livros, reeditada pela José Olympio.

Apaixonado (como Augusto) pela obra e pela figura de Campos de Carvalho, o narrador de Fui à Bulgária... viaja a Sófia, a capital do país, em busca de seu mito literário. Em busca de Campos de Carvalho? Não, em busca da própria Bulgária, que não passa de outro nome que ele – imitando seu mestre – atribui à literatura. Vamos por partes: o que é um púcaro? "Pequeno vaso com asas destinado a extrair líquido de outros recipientes maiores". Um objeto satélite (uma Lua) cuja razão de ser deixaria de existir não fosse a presença de um objeto maior (Terra) em torno do qual ele "navega". Também Augusto se coloca na posição de satélite de Campos. Que nos lembrou em outro livro, A Lua Vem da Ásia, que nosso satélite tem uma origem que não podemos alcançar.

Por causa de um púcaro, o narrador de Augusto atravessa o Atlântico, imitando a viagem do herói de O Púcaro Búlgaro, disposto a provar a existência, ou a inexistência, da Bulgária. A Bulgária existe? Sim, é claro – mas não? E a literatura, ela existe mesmo? O personagem de Campos decidiu viajar depois de ver um púcaro búlgaro em uma prateleira de um museu da Filadélfia. Aquele vaso era uma cicatriz, ou talvez um sinal, da (improvável) existência da Bulgária. Sim, porque tanto o narrador de Campos de Carvalho, quando o de Augusto Cavalcanti, estão condenados a atolar na própria busca. Não chegam a lugar algum – mas se chega?

É o que se constata todo o tempo neste inspirado Fui à Bulgária...: ninguém chega até ela, e só por isso continuamos a procurá-la. Augusto extrai essa lógica algo surrealista de Campos de Carvalho, e não só a extrai, mas a adota. Contudo, como um bom discípulo indisciplinado, ele também trai (reinventa) a profecia de seu mestre. Fica menos com a República da Bulgária, o país real, localizado nos Balcãs – onde, aliás, nasceram os ascendentes da presidente Dilma Rousseff –, e mais com uma Bulgária hipotética. Mais que a afirmação da existência de um país, ela é uma pergunta a respeito de sua existência. Uma pergunta que o reinventa, ou, talvez dizendo melhor, demonstra a impossibilidade de conhecer a Bulgária (ou qualquer país) "verdadeiramente".

A literatura tem esse poder: ela nos mostra, a cada página, que nossa mente é frágil demais para dar conta da grandeza do real. Mesmo o nome de um pequeno país – no caso, Bulgária – é só um recurso muito precário com que nomeamos um território espremido entre a Romênia, a Turquia e a Grécia. O que é a Bulgária? Cogita o narrador de Augusto: "Talvez a Bulgária seja até mesmo uma dor, ferida causada por pressões acumuladas em territórios ósseos da alma". A Bulgária, ele sugere ainda, parece ser só uma máscara que encobre uma infinidade incontável de realidades (Bulgárias) muito maiores. Ideia, a da máscara, que combina com uma famosa declaração de Campos de Carvalho: "Nasci clown e morrerei clown".

Nas mãos ágeis de Augusto, Campos de Carvalho e seu livro de despedida servem, na verdade, para uma interrogação cômica a respeito da existência da literatura. Não só dela, mas da própria existência humana. É preciso perder-se de si, Augusto nos sugere, para chegar até o lugar que procuramos. Hipótese que se confirma na declaração de seu narrador, segundo a qual só os sonâmbulos – isto é, aqueles que têm um pé na vigília e outro no sono – são capazes de chegar à Bulgária. Só eles não se contentam em sonhar um sonho, mas teimam em viver o sonho.

O narrador de Fui à Bulgária... sabe que o país que procura é "um país anti-lógico, que prefere a invisibilidade". Só por isso podemos observar um púcaro búlgaro na prateleira de um museu americano, ou mesmo desembarcar em Sófia, e exclamar: "Isto é a Bulgária!" Há um poder protetor nas palavras, que se expressa na declaração de um dos personagens de Augusto, o teórico Andropoulos Todorov: "O que eu posso nomear não pode, na verdade, me ferir". Pelo mesmo motivo, chamei essa crônica de "A lua vai cair": acreditando que, ao dizê-lo, me garanto (mas quem realmente me assegura disso?) de que a Lua não cairá sobre minha cabeça. Isso eu aprendi lendo Fui à Bulgária..., um romance muito mais sábio do que, aos apressados, talvez pareça ser.

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