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Arranco dos ensaios reunidos pela francesa Catherine Lépront em Entre o Silêncio e a Obra (Difel, tradução de Caio Meira) uma série de histórias luminosas. Ler um livro é garimpá-lo — como se o leitor estivesse em uma mesa de cozinha catando feijões. Em meio às 290 páginas da coletânea, extraio momentos que não sei se a justificam, mas sei que me justificam e me situam enquanto leitor. "Parece-me que foi necessário meio século simplesmente para aprender que armas devo pegar e que armas devo entregar para começar a viver minha vida". As palavras, do escritor inglês John Cowper Powys, transcritas em um dos últimos ensaios, definem o leitor como um eleitor. A cada página, ele elege o que lhe interessa e também (silêncio) o que deseja descartar. Ler é fazer escolhas — ninguém "lê tudo". Escrever, Catherine nos mostra, é escolher.

Na abertura do livro, a autora recorda uma antiga lenda narrada pelo holandês Harry Mulisch. Um imperador chinês pede a um homem que desenhe um galo. O artista lhe pede, antes, dez anos de aprendizagem. Hospeda-se no palácio real e passa toda uma década desenhando milhares de galos. Não mostra nenhum deles ao imperador. Passam-se os dez anos. O monarca lhe entrega, então, uma folha de papel e um pincel para que faça o desenho prometido. O artista toma posição. Em um gesto firme, se limita a desenhar um único traço. O imperador se enfurece, rasga o desenho e manda decapitar o pintor.

Ao rememorar essa história, Catherine Lépront desafia "todos aqueles que, como o imperador chinês, fiam-se somente nos dados imediatamente sensíveis (...) e que só veem na arte a manifestação ou mesmo o sintoma de um dom natural — algo que não precisaria nem de aprendizagem , nem de trabalho". Esses analistas apressados, na verdade, nunca pisaram o ateliê do artista, desprezando assim o quanto a arte "pressupõe de trabalho entre o silêncio em que ela surgiu para o poeta (...) e as últimas correções da obra acabada". Há todo um esforço — feito também em silêncio e reclusão — sem o qual não há obra. Assim testemunham, fartamente, os cadernos de trabalho, os manuscritos, os diários e a correspondência dos grandes criadores.

O que nos incomoda e incendeia não é o que vemos, mas o que não vemos. O próprio Franz Kafka (autor de O Processo), quando pensa em si mesmo, costuma visualizar um abismo. Em uma de suas cartas, anota: "Desesperado. Hoje, no semi-sono da tarde. Esta dor acabará estourando a minha cabeça. E, exatamente, nas têmporas. Ao imaginar a cena, o que realmente vi foi um ferimento de bala, só que com o buraco aberto para fora, as bordas afiadas, como quando se explode uma lata".

A arte, Catherine nos mostra, é esse ferimento. Que deve ser tratado (trabalhado) intensamente. Mas que, ao mesmo tempo, procede de um furo — um rasgão que não se deixa ler e cuja origem, por maior que seja nosso esforço, não alcançaremos. O empenho na criação, o apego ao próprio ofício, não impede que o resultado — como, aliás, em Kafka — seja, apesar da linguagem objetiva e circunspecta, absolutamente irregular. Lembra a autora de Petróleo, romance que o cineasta Pier Paolo Pasolini nos legou com sua morte em 1975, e que foi editado 20 anos depois, em Paris. Recordando o prefácio assinado por Aurelio Roncaglia para a edição francesa, Catherine assinala que o romance foi escrito "por estratos", de modo que toma a forma quase que de um diário, "um misto de páginas finamente acabadas e páginas em estado de esboço". Ordem e desordem se misturam e se alimentam — assim como, durante o processo criativo, o esforço racional e a perplexidade se complementam.

Ler é procurar ganchos — como alguém que, de pé, busca um apoio em um vagão de metrô em movimento. Nem sempre esses suportes nos bastam, nem sempre eles são suficientes para encadear a torrente de palavras. Escrever — criar — é a mesma coisa. Ainda pensando em Petróleo, escreve Catherine: "Trata-se então de uma obra da qual uma parte minoritária já está criada, mas cujo essencial ainda está em criação, ao mesmo tempo ainda borbulhante, esboçada e lacunar". O esforço (necessário) para organizar um trabalho nem sempre resulta em organização, muitas vezes conduz a mais desorganização. Como se você pisasse o chão de uma sala em que faltassem muitos tacos. Você se equilibra, luta para permanecer de pé, empenha-se em seu caminho, mas alguma coisa, volta e meia, o atrapalha e derruba.

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