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Livro

W. H. Auden (Poemas)

W. H. Auden. Tradução de João Moura Jr. e José Paulo Paes. Companhia das Letras, 264 págs., R$ 42. Poesia.

Contrassenso: contradição, despropósito, aberração. São muitas as definições possíveis para a palavra. Ela aponta para o erro, para o equívoco e, sobretudo, para a ausência de razão. Pois é com o contrassenso e através do contrassenso, que um poeta se faz poeta. É preciso suportar a incoerência da vida. É preciso não temer a inconstância. É preciso escrever "apesar de", ou ninguém escreve um poema.

"Pôs fim ao contrassenso ao qual se acostumara;/ Até que de lira e fraqueza se afastou", escreve o poeta inglês W. H. Auden (1907-1973) a respeito de Arthur Rimbaud – o lírico furioso que, muito cedo, desmentindo a si mesmo, abandonou a poesia para se tornar mercenário, isto é, um agente da vida prática e do cálculo. Os versos estão em "Rimbaud", poema que encontro à página 89 de W. H. Auden (Poemas), Companhia das Letras, seleção de João Moura Jr., que é também o tradutor ao lado de José Paulo Paes.

Rimbaud, diz Auden, não aguentou a obscuridade e o contrassenso que definem a poesia. Preferiu uma vida prática e solar. O poeta inglês não o perdoa: "Agora, cavalgando em África, sonhava/ Com um outro eu, um filho, alguém bem-sucedido,/ E sua verdade aceita pelos mentirosos". Eis o primeiro ponto: um poeta precisa suportar (sustentar) a verdade – sua verdade. Não pode ser como os mercadores, que querem sempre tirar vantagens em tudo, e para isso negociam a vontade própria. Um poeta não renega a si mesmo: deve, sustentar e alimentar o monstro que carrega dentro de si. Foi isso, sugere Auden, que Rimbaud não suportou, preferindo se tornar o bom filho dos mentirosos. O êxito, e não a palavra. O senso (o bom senso) e não o contrassenso.

Penso na lira e no lirismo. Nos diz Auden: "O álcool que o amigo fraco e lírico ofertara/ Metodicamente os sentidos desregrou,/ Pôs fim ao contrassenso ao qual se acostumara;/ até que de lira e fraqueza se afastou". O amigo-inimigo? Talvez Paul Verlaine. Esse amigo anestesiante pode estar em qualquer parte. Não importa quem ele seja. Importa que, amolecido, Rimbaud se afastou "da lira e da fraqueza". Preferiu a alma venal e o egoísmo dos mercenários. Optou por seu silêncio traiçoeiro.

Até hoje, os líricos são vistos como fracos. Ou pensando ao contrário: a fraqueza (e a lira) são vistas como venenos mortais. E, no entanto, elas persistem. Em um poema anterior, "Musée dês Beaux Arts", nos recorda Auden: "No que respeita ao sofrimento, nunca se enganavam/ os Velhos Mestres: quão bem lhe compreendiam/ A humana posição". O humano se define pela dor. Não como doença, mas como experiência, matéria de pensamento, de reação feroz, de raiva, de reflexão. Matéria de poesia. Os líricos sofrem – e por isso parecem, por vezes, tão irreais. Não porque sofram, mas porque não escondem este sofrimento. Ao contrário: dele fazem a matéria de sua escrita. Dele escrevem – fazendo do lirismo a tinta densa de seus versos.

Não precisa ser uma dor dilacerante, pois o mundo é feito de pequenas (e atrozes) dores que se acumulam como feridas e que desenham o rosto de um homem. Dói, reclamamos, lutamos contra, mas é assim. Escreve Auden: "Num lago junto à beira da floresta:/ Eles jamais esquecem/ Que mesmo o pavoroso martírio deve prosseguir seu curso". Vivemos em um mundo "onde os cães levam sua vida canina" e onde os poetas, não "apesar", mas "com" a dor, escrevem seus poemas. Disso, penso seguindo as pegadas de Auden, um medroso Rimbaud fugiu. Traiu a poesia não porque ela se esgotou – mas porque esgotou sua resistência à dor que a define e constitui.

Rimbaud não foi o barco entrevisto por Auden no mesmo poema. "O delicado barco de luxo que devia ter visto/ Algo surpreendente, um rapaz despencando do céu,/ Precisava ir a alguma parte e continuou calmamente a navegar". Arthur Rimbaud: volto, sempre, a pensar em Vinicius de Moraes (para mim, isso é inevitável), que nos anos de juventude tanto desejou "tornar-se Rimbaud". Vinicius que, em sua corajosa "Carta aos Puros", escreveu com todas as letras: "Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/ E em cujos olhos queima um lento fogo frio/ Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ Capazes de não rir durante anos a fio". Pureza: a mesma que Rimbaud, na poeira solar da África, partiu para buscar. A mesma que a tantos afasta da poesia e, sobretudo, dos líricos. Líricos: aqueles que são capazes de sustentar uma dor que não é adorno, ou circunstância, nem castigo, mas é a própria matéria da poesia. Que é canto.

Uns fogem, mas a natureza – indiferente, dolorosa, imperfeita – segue seu curso. A "humana posição" não é a busca da perfeição, mas o acolhimento deste sofrer. É a inclusão da imperfeição não como prótese, mas como coração do humano. Volto a Auden: retorno uma página mais – leio de trás para frente, como um barco embriagado – e esbarro em "Um Porto Principal", parte sexta de "Uma Viagem". A viagem é o "estado natural" do poeta – se é que, quando pensamos em poesia, podemos mesmo pensar em natureza. A viagem não "a negócios", não "em busca de riqueza", mas em busca de si. A aventura em vez do projeto.

Diz Auden: "Não há nenhum destino certo à nossa espera,/ Nenhum dado, só nossos corpos; temos planos/ De aprimorar-nos (Rimbaud, penso eu); um gélido hospital nos reitera/ A igualdade de todos os humanos". A poesia de W. H. Auden se caracteriza pelo destemor. Ela vai direto ao centro das coisas. Não se ilude com sonhos, com promessas, com planos: quer o que é. Dura realidade pensar que, no fim, somos "só nossos corpos". Só um poeta de coragem (Auden) pode agarrar este fato com firmeza e transformá-lo em poema.

É por isso que o verso final se agiganta: "Aprendemos a piedade e a rebeldia". Piedade para aceitar a dor que não cessa, que nos leva a escrever e que nos iguala. Rebeldia para não ceder às promessas falsas de uma salvação africana. Não existe o continente salvador. As utopias não passam disso: utopias. Existem para adornar a existência, para amansá-la, para torná-la mais suportável. Para além dessas ilusões, a poesia (Auden) insiste em nos recordar que estamos vivos. E é só isso e é tudo isso.

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