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Ensaio

No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços da Autoria em Clarice Lispector

Maria Lucia Homem. Prefácio de Yudith Rosenbaum. Boitempo/Edusp, 200 págs., R$ 34.

Lygia Fagundes Telles costuma recordar uma experiência que viveu ao lado de Clarice Lispector, de quem foi amiga íntima. Certa vez, as duas viajaram a Bogotá para um Congresso Internacional de Escritores. Em uma das mesas de debates, importantes teóricos literários discutiam a obra de Clarice. Elas estavam na plateia. Mal o debate começou, porém, Clarice já queria ir embora. "Oh, Lygia, eu não entendo nada que esses homens estão dizendo. Vamos a um bar?" A análise teórica a entediava. Saíram discretamente, "fugindo", recorda Lygia, "como duas adolescentes". Já no bar, diante de uma taça de vinho, Clarice disse à amiga: "Não quero voltar". E propôs, com sua fala cheia de erres: "Vamos comprar esmerrraldas? Na Colômbia existem esmerrraldas barrratíssimas". Foi o que fizeram.

Recordo sempre desse episódio, que Lygia me narrou, um dia, entre boas gargalhadas, quando me defronto com um estudo teórico a respeito da obra de Clarice. É o que acontece agora, quando leio No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços da Autoria em Clarice Lispector, ensaio híbrido entre a literatura e a psicanálise, de autoria de Maria Lucia Homem (Boitempo/Edusp). Escrito com rigor e indisfarçável paixão, o livro tem em sua base, contudo, um impasse: seu objeto é justamente aquilo que lhe escapa. A parte silenciosa, e inalcançável através das palavras, que constitui o coração da escrita de Clarice.

Não consigo deixar de pensar que, em seu esforço, Maria Lucia incorpora alguma coisa da própria literatura. Alguma coisa inerente, enfim, às próprias palavras, "teóricas" ou não. Algo que Clarice conhecia muito bem e que, embora indefinível, a levava a escrever. Clarice escreveu guiada pelo esforço impossível de nomear aquilo que não se pode nomear. Teve como objeto o inatingível. Em consequência, sua literatura se transformou em uma ronda interminável (alguns dizem: "obsessiva") em torno de um enigma. Escrever um ensaio teórico sobre a obra de Clarice é entregar-se à mesma ronda e à mesma dança em torno do objeto secreto.

Esforço inútil? De modo algum: o belo livro de Maria Lucia Homem prova que não. Mas, então, por que Clarice se irritava tanto com aqueles que, atravessando seus livros, insistiam em agarrar seu coração? Um coração perdido para sempre – como é o real diante do estojo das palavras. Ou, como recorda em seu prefácio Yudith Rosenbaum, citando o mexicano Octavio Paz: "A expressão estética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a expressa". Impasse, paradoxo, aventura sem saída que, no entanto, movem a ficção.

Todo pensamento a respeito da literatura, em consequência, esbarra em algo que é inerente à própria literatura: o caráter opaco do real. Atributo intransponível que, em vez de calar Clarice, a levou a escrever. Pelo mesmo motivo, poderíamos pensar que a opacidade do mundo torna a literatura uma atividade insignificante. Fracassada, sim, ela é sempre – como qualquer experiência com a língua. Mas, nem por isso, menos potente.

Maria Lucia abre seu livro com uma sentença ríspida, mas atordoante, de Clarice que resume essa tarefa impossível: "Pois a vida é impronunciável". Se é, torna-se igualmente frágil – para não dizer inútil – a noção de "Autor", figura central da atividade literária. Ao contrário do que alguns supõem, o Autor não é uno, racional e esclarecido. A rigor, aquele que escreve não sabe o que faz, ou só sabe em parte muito insignificante. Alguém escreve em seu lugar ou, pelo menos, a seu lado. Alguém que se conserva em silêncio: a parte escura que todos carregamos. A própria Clarice nos falou, em Um Sopro de Vida, da "busca da palavra na obscuridade". Ideia que Maria Lucia reforça com uma citação do poeta italiano Giuseppe Ungaretti: "A palavra é uma breve ruptura do silêncio". E que me faz lembrar, ainda, de uma bela observação do psicanalista britânico W. R. Bion a respeito do conhecimento: "O conhecimento é só um relâmpago em meio à escuridão".

Estranha condição dos ensaios literários – ao menos daqueles que, como o livro de Maria Lucia Homem, incorporam essa consciência da inconsciência: eles terminam por aderir, ainda que a contragosto, à própria esfera literária. O objeto, literatura, se transforma em sujeito. Na escuridão da escrita, é esse objeto oculto – que Clarice chamou de Neutro, "it", ou "A Coisa" – quem dá as cartas. Ocorre-me outro pensamento citado por Yudith em seu prefácio, tomado do poeta alemão Friedrich Schiller: "Quando a alma fala, já não fala a alma". Não escapamos desse desencontro.

Não é fácil, portanto, produzir um estudo teórico a respeito da obra de Clarice Lispector. Até porque, indiferente ao estatuto clássico da ficção, ela já traz dentro de si, velada, mas gritante, sua própria teoria. Uma teoria silenciosa, que não se explicita, mas que está ali. Talvez seja bom recordar aqui uma ideia do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, citada por Maria Lucia: "Aquilo que não se pode dizer, deve-se calar". Mas como escrever a respeito do que permanece em silêncio? Como capturar aquilo que se define, justamente, por escapar a toda captura? É sobre esse impasse que Maria Lucia escreve. É sobre o mesmo impasse que a própria Clarice sempre escreveu.

Tentando explicar sua falta de domínio sobre a escrita, Clarice disse: "É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada". Teorizar a respeito da obra de Clarice é adotar essa "coisa qualquer" como objeto. Objeto sem nome e sem figura, que se define, justamente, por não se enquadrar em nenhuma representação. Seria o mesmo que estudar um planeta longínquo, situado em alguma galáxia muito distante. Você pode compor conjeturas, traçar hipóteses, esboçar teorias. Mas elas estarão, todo o tempo, encobertas pelo manto do silêncio.

Manto em que o próprio Autor, enfim, se vê envolvido. Disse Clarice, certa vez, transportando o Autor para a posição de objeto da escrita: "O bom de escrever é que não sei o que vou escrever na próxima linha. Eu queria saber sobre o que pretendem de mim os meus livros". A palavra, sim, dá as cartas.

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