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Romance

Cristovão Tezza. Record, 240 págs., R$ 32.

Aos 70 anos de idade, o professor Heliseu da Motta e Silva se prepara para receber uma homenagem. A agitação toma seu espírito. Mentalmente, ele rascunha o discurso de agradecimento. Professor de Filologia, é o personagem central de O Professor, novo romance de Cristovão Tezza. Enquanto projeta seu discurso, Heliseu tenta encontrar um sentido para a vida. Mestre formado na velha escola da Filologia Românica, é um homem que preza a tradição e a ordem — mas sua mente febril contraria esse apego. Seu discurso imaginário se desenrola em ondas e em golfadas — exatamente como experimentamos o pensamento no dia a dia. Nenhuma ordem, nenhum sentido, só um emaranhado de lembranças, emoções e impulsos.

"Na verdade, senhores — ele fecharia o primeiro parágrafo assim —, eu não quero me lembrar". Recordar desorganiza mais do que organiza. Tudo se mistura. Tempos de juventude se mesclam com acontecimentos do dia anterior. O presente — representado pela empregada, dona Diva — interfere na organização do passado. A história recente brasileira, assim como a renúncia do Papa, estampada nas manchetes de jornal daquela manhã, colaboram para a destruição de qualquer esperança de ordem. Escrito na primeira pessoa, o romance de Tezza acompanha, passo a passo — na medida em que isso é possível — a turbulência interior de Heliseu. Risco da primeira pessoa, em que Tezza se lança com grande desembaraço: esbarrar no caos.

Heliseu tem o desejo secreto de simplesmente esquecer a homenagem, que ao mesmo tempo o envaidece. Descobre o professor que somos seres incoerentes e que nossos pensamentos divergem de nossas intenções. Para seguir seus passos, Tezza trabalha com uma magnífica técnica de mistura e de colagem, marcada por travessões, parêntesis, saltos no tempo, rupturas espaciais, cortes. Esse sistema de quebras e de desmentidos, enfim, é o próprio sistema do pensamento. Uma vida é pura linguagem, é pura experiência da linguagem e de seus limites. Todo esse turbilhão se desenrola exatamente na manhã do dia em que Heliseu será homenageado. O livro acompanha, passo a passo, sua dificuldade para se levantar, sua relação ambígua com dona Diva — única pessoa que resiste em sua intimidade desde a morte da mulher, Monica —, seus achaques de septuagenário, seu desejo ardente de agradar misturado a um medo antigo do fracasso. Professor apaixonado por seu objeto de estudo, os pensamentos de Heliseu são, a todo momento, atravessados por breves e rígidas lições de filologia. A mente desliza do campo lamacento das intimidades para o terreno mais sofisticado da linguística. Logo o professor toma posse do discurso, ordena-o, assume o comando, que pouco depois perderá outra vez. O real (o inesperado) está sempre a interferir em sua busca.

O Professor é, enfim, a história de um homem em luta com a língua, que é viva, está em constante mutação e na verdade, em vez de comandada por nós, nos comanda e submete. Lendo o romance de Tezza, entra-se inevitavelmente no mesmo transe que acomete Heliseu: em um pensamento em espiral, que se desmente a cada curva, que se anula e se supera, e nunca chega ao sentido final. A toda hora, Tezza nos obriga a voltar algumas linhas, ou mesmo alguns parágrafos, prendendo-nos também na busca do fio inexistente. Por fim, aceitamos a desordem infernal, momento em que o romance se torna uma aventura sofisticada e deliciosa.

A paixão secreta de Heliseu por Therèze oferece-nos um paralelo que ajuda a compreender o livro. Aluna da faculdade, ela se dedica a estudar a importância da ironia no português brasileiro. "É impressionante a rapidez, a eficácia com que o ouvido brasileiro procura e descobre todas as nuances ocultas de significado no evento da fala". Ao defender sua tese, que maravilha Heliseu, Therèze — assim mesmo, sem o acento do primeiro "e" — nos oferece uma chave para acessar o romance de Tezza, ele também cheio de nuances e de significados ocultos, um delicado enigma que se oferece à decifração do leitor. A ironia — isto é, quando se diz o contrário do que se quer dar a entender — é um elementos fundamentais do discurso interior de Heliseu, que bloqueia não só nossa compreensão do que ele pensa, mas sua própria compreensão a respeito do que pensa. Atestando assim os aspectos arbitrários e involuntários do pensamento. "Há um duplo sentido permanente na realização da linguagem brasileira", Therèze pensa, entregando-nos assim um caminho para enfrentar (mas nunca decifrar, nunca chegar ao sentido final) a tormenta de ideias em que Heliseu se afoga.

Algumas obsessões se repetem no discurso imaginário do professor — como, por exemplo, a lembrança insistente do filho Eduardo, que ele encontrou um dia beijando outro rapaz, "o gesto mais tenso e desafiador que jamais presenciei". Edu é apenas um dos elementos da mente labiríntica de Heliseu, na qual, quando mais se persegue o fio de um sentido, mas dele nos afastamos. O professor é, assim, um personagem fantasticamente humano, com todas as falhas, hiatos e paradoxos que definem nossa maneira de pensar. Não pensamos para chegar a este ou àquele lugar; pensamos para viver, para nos conservar vivos. Em luta contra o caráter vivo de sua mente, Heliseu aos poucos aprende que a língua — como já lhe indicaram os livros que estudou — é um bicho indomável, com que só a muito custo conseguimos lidar.

Andando em curvas, como se pisasse o rasto de um labirinto, Heliseu se revela um homem absolutamente solitário — outra característica, enfim, do humano. Entre Monica, a mulher morta, e Therèze, a mulher ideal — que está sempre em luta pela "desconstrução" do mundo —, Heliseu sente, no fundo, as forças lhe escaparem, mal expresso em pequenas tonturas que o atormentam no banheiro. "O inimigo é o corpo", ele formula uma explicação, como que desejando salvar o pensamento da culpa. Mas não existem culpados, não existem vencedores nem vencidos, tampouco existe a possibilidade de chegarmos a um sentido qualquer. A busca frenética de Heliseu por sua verdade pessoal é, enfim, a própria verdade.

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